Naguib Mahfuz: a literatura entre a paz e a guerra

Aos 89 anos, um dos maiores escritores do Egito, Prêmio Nobel de Literatura de 1988, fala em entrevista exclusiva sobre a crise no Oriente Médio. Por Randa Achmawi

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Por Agencia Estado
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Autor de dezenas de livros, Naguib Mahfuz escreve pouco hoje em dia, em conseqüência do atentado sofrido em 1994, quando foi esfaqueado por fanáticos religiosos que criticavam seus textos e sua postura favorável à paz com Israel e a defesa que sempre fez do escritor Salman Rushdie, condenado à pena de morte pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. Mahfuz raramente concede entrevistas por já estar quase cego e surdo. Mesmo assim, ele cedeu um dos pequenos e recentes textos que tem escrito para publicação no Brasil e concedeu uma entrevista exclusiva à repórter brasileira residente no Cairo. Para ele, "ser intelectual é ser uma pessoa consciente. Sendo suas reflexões e sua consciência que guiam não somente seus passos e atitudes, mas também as dos outros", disse Mahfuz. A literatura, na sua opinião, deve ser engajada. As obras do início de sua carreira têm a marca do realismo. Mais recentemente rendeu-se à magia e ao erotismo das tradicionais narrativas de As Mil e Uma Noites para chegar agora, diante das limitações físicas, aos textos curtos inspirados nos seus próprios sonhos. Sua obra-prima é a chamada trilogia do Cairo publicada entre 1956 e 57 e lançada no Brasil pela editora Record: Entre Dois Palácios, Palácio do Desejo e O Jardim do Passado. A editora prepara o lançamento de mais quatro títulos do autor, ainda em fase de tradução. Sua primeira obra publicada aqui foi As Codornas e o Outono, pela Editora Espaço e Tempo, em 1989 e a última foi Noites das Mil e Uma Noites, pela editora Companhia das Letras, em 1997. Leia mais sobre a vida e a carreira do escritor aqui ou no Caderno 2/Cultura, do jornal O Estado de S. Paulo, e conheça também a opinião de um eminente intelectual judeu, André Chouraqui, sobre a situação no Oriente Médio. A obra de Mahfuz é analisada por Safa Abou Chahla Jubran, professora de literatura árabe da USP, as adaptações de suas obras para o cinema são comentadas pelo crítico do Caderno 2 Luiz Zanin Oricchio. Agência Estado - Gostaria de começar a nossa conversa com o assunto mais controvertido do momento, ou seja, a escalada de violência, que começou em Jerusalém e que está se espalhando pela região. O sr. poderia comentar esses fatos? Naguib Mahfuz - Eu não posso dizer senão que estou sentindo uma forte dor e uma grande tristeza. E quando tento compreender por que isso tudo começou, percebo que tanta violência foi desencadeada porque um político extremista (Sharon), interessado unicamente em chamar a atenção dos seus sobre si mesmo, violou um templo religioso sagrado (entrou com sapatos, ele e seus homens, na mesquita Al-Aksa, o segundo templo mais sagrado do Islã). O primeiro erro, em minha opinião, é a violação de qualquer monumento tido como sagrado por qualquer religião. Os elementos sagrados de todas as religiões devem ser respeitados por todos, seja qual for a sua crença. O desrespeito dessa regra é em si mesmo uma violação e até um crime contra a humanidade. É claro que era de se esperar que, em face de uma tal ofença, aqueles que se sentiram agredidos reagissem expressando a sua cólera atirando algumas pedras naqueles que os ofenderam profundamente. Como o sr. interpreta a reação de Israel contra as populações? Tudo isso poderia, ao meu ver, ser rapidamente resolvido pela polícia local, sem deixar grandes seqüelas. Foi então que eu estranhei, quando soube que o Exército tinha sido chamado e que havia agora helicópteros e tanques de guerra lutando contra os manifestantes armados de pedras. Isso é sem dúvida uma atitude selvagem e primária. E eu nunca, nunca pensei que Israel pudesse agir dessa forma. Sempre tive um conceito bastante alto deles. Sempre os julguei como um povo tendo um alto padrão de civilização e isso impede evidentemente qualquer um de agir de forma tão irracional. Mas as câmeras provaram que eles estavam matando crianças e adolescentes? Eu não escondo meu alívio por não ter sido capaz de ver tais cenas. E nesse momento até agradeci a Deus por não estar mais podendo ver com nitidez. Mas cenas tais quais a do pequeno Mohamed El Dorra morrendo entre as mãos de seu pai, ou outras, onde botas de soldados Israelenses batem com violência as cabeças de jovens palestinos, que me foram descritas, não são um comportamento que possa ser concebido por qualquer ser humano racional. Mas histórias semelhantes já não foram relatadas, sobretudo em certos governos tiranos? É claro que nós mesmos, aqui no Egito, em outros tempos, lutamos contra os ingleses para conquistar nossa independência. Nós fizemos uma revolução, pela qual pagaram milhares de mártires. No entanto, nunca se falou de um só avião, tanque ou canhão que nos tenha bombardeado. Isto porque, nenhum responsável inglês, qualquer que fosse seu cargo ou posto, não poderia justificar um tal comportamento perante a opinião pública de seu país. É o que eu chamo de civilização até mesmo na violência. E qual é a repercussão que tais ataques poderão trazer para o futuro? O que eu lamento mais do que qualquer outra coisa é que o processo de paz que se encontrava na reta final parece ter voltado, neste momento, à estaca zero. E agora o que o sr. acredita que os palestinos vão fazer? Existem aqueles que continuarão acreditando no processo de paz, e que vão continuar se apegando a ele, fazendo tudo para não deixá-lo morrer. Quanto à grande maioria daqueles que se encontram nos territórios ocupados, creio que eles vão, a partir de agora, apelar ao modelo do Hesbullah, aplicando as técnicas de captura e seqüestro, para tentar criar uma grande repercussão no interior de Israel. Tudo isso é uma grande degradação dos fatos. Mas será o resultado fatal de uma escalada da violência. Logo existem duas opções: a da paz e do diálogo e a da guerra. Exatamente, e isso quem vai determinar, em minha opinião, são os próprios israelenses e não os palestinos. E quanto ao Conselho de Segurança das Nações Unidas, o sr. acredita que ele pode ter um papel determinante na resolução desse conflito, mesmo que algumas de suas resoluções passadas jamais tenham sido postas em prática? Eu continuo acreditando no papel das Naçõess Unidas, esta é uma instância humanitária de máxima envergadura, onde os representantes de todos os povos do planeta têm o espaço e o direito de votar por seus pontos de vista. Suas resoluções são importantes, não seria senão pelo fato de que elas dão legitimidade e suporte moral a todos aqueles que lutam contra a injustiça. Mas essas resoluções não fornecem unicamente suporte moral, elas foram em diversos momentos bem efetivas? Sim, como por exemplo o que aconteceu nos Bálcãs quando se lutou contra o ditador iugoslavo criminoso, o Slobodan Milosevic. Em momentos como aquele eu cheguei a acreditar que o mundo tinha mudado. E por essa razão eu não posso perdoar os Estados Unidos que durante a guerra dos Bálcãs defenderam a justiça com todas as suas armas e que agora fazem vista grossa em relação aos crimes cometidos nos territórios ocupados. Num contexto parecido, o sr. acredita que em seguida a tal passividade manifestada por parte dos americanos, eles ainda devem continuar sendo os padrinhos das negociações de paz? Sim, acredito que os americanos ainda são os melhores padrinhos das negociações. São eles os que têm mais força e também a maior influência sobre a região. Reprodução/AENaguib Mahfuz: "Ser intelectual é ser uma pessoa consciente. Sendo suas reflexões e sua consciência que guiam não somente seus passos e atitudes, mas também as dos outros" Qual a dimensão da influência americana na região, sobretudo no mundo árabe? É evidente e conhecido de todos que eles têm uma influência muito forte sobre todo o mundo árabe, no entanto, certos exemplos, como os eventos que estamos testemunhando neste momento, podem certamente afetá-la e diminui-la. E mesmo se isso não ocorre nos próprios governos, poderá sem dúvida ocorrer, e isso é muito mais importante, nos povos. O sr. ainda acredita que o petróleo seja uma arma com a qual os árabes podem impor-se na cena mundial, e que pode ser utilizada como meio de pressão ou imposição de seus pontos de vista? Quanto a isso eu creio que o petróleo já não é uma arma tão eficaz como já foi em outros tempos. Pois hoje, muitos outros países fora do mundo árabe são também grandes produtores de petróleo. E isso em adição ao fato de que os próprios Estados Unidos têm uma grande reserva petrolífera. Uma reserva que poderia suprir as necessidades do mundo inteiro. Mas quando pensamos em buscar elementos para fazer pressão, ou defender seus pontos de vista, creio que o emprego de qualquer meio, por mais insignificante que ele possa parecer, é justificável. Nós testemunhamos nos últimos dias um fato histórico: a tomada do poder iugoslavo pelo seu próprio povo, impondo a democracia aos regimes tiranos, no caso o de Slobondan Milosovic. Como o sr. viu estes fatos? Para mim os iugoslavos merecem hoje todo o meu respeito, pois eles provaram sua determinação e sua vontade de impor a democracia a qualquer preço. Isso é certamente um momento histórico. E o que é mais importante, um dos mais limpos dos últimos tempos. E no mundo árabe, especialmente no Egito, como o sr. vê a transição para a democracia? Na realidade, nós estamos caminhando em direção à democracia. Este caminho talvez esteja se alongando um pouco, mas ele é sem dúvida o melhor caminho, pois ele é guiado por uma grande sabedoria. Outro caminho, uma revolução por exemplo, talvez seja demasiado custoso e até mesmo perigoso. O sr. acredita que as revoluções podem trazer ao poder governos democráticos? Sim, se forem revoluções nascidas de um movimento do povo. Como o sr. vê a influência da globalização sobre os povos do terceiro mundo e sobretudo os do mundo árabe? Minha experiência com essas coisas muito modernas é relativamente limitada. No entanto, em minhas conversas regulares com amigos economistas, nenhum deles nunca me disse que a globalização fará prosperar economicamente os povos do terceiro mundo. Ao contrário, eles me dizem que nela não se respeitam os direitos vitais do ser humano, como os de ter um trabalho e dignidade. Mas, no que diz respeito à abertura e ao intercâmbio de conhecimento entre os povos, é claro que acredito que isso seja positivo para o mundo árabe ou qualquer outro lugar no planeta. O sr. foi vítima, há alguns anos, de um atentado terrorista. O que ele representa hoje? É uma sensação muito real com a qual eu tenho de vivenciar todos os dias. Pois eu ainda não estou curado. Aqui está a minha mão direita, que eu não posso usar até hoje com eficiência. As conseqüências do atentado estão constantemente presentes tanto em meu corpo como em meu espírito. E qual é a sua opinião sobre o fundamentalismo islâmico que levou a esse atentado? O extremismo não tem nada a ver com religião. A religião veio para os povos e por isso ela nunca poderia ser extrema ou defender pontos de vista extremistas. E extremismo é uma coisa detestável. E o que aconteceu em Jerusalém também foi conseqüência de um ato extremista. Todos os resultados do extremismo são catastróficos. O sr. acredita que a onda de violência resultante do extremismo ainda ameaça as ruas do Cairo? Na realidade, não se teme mais esse tipo de violência por aqui. Cada um dos que conheço apresenta uma razão para esta calmaria. E as razões nem sempre concordam umas com as outras. Mas o importante, e eu agradeço a Deus por isso, é que a situação se acalmou. Algumas opiniões no Ocidente sempre fazem o paralelo entre o Islamismo e a violência. O que o sr. pensa disso? Isso não é verdade, pensar assim é uma grande injustiça. E eu respondo a esse tipo de julgamento com a seguinte pergunta: os nazistas ou os fascistas, eram eles muçulmanos? O Islamismo não é uma religião de violência, ela ao contrário prega a tolerância entre os povos e as religiões. E a prova disso está em sua história. No tempo em que os califas governavam o mundo árabe foi quando melhor se conheceu a tolerância e a coexistência pacífica entre religiões. Nesses tempos, judeus, cristãos e muçulmanos viveram em paz e segurança. O que representa ser um intelectual aqui no Egito? Ser intelectual é ser uma pessoa consciente. Sendo suas reflexões e sua consciência que guiam não somente seus passos e atitudes, mas também as dos outros. E o sr. acredita que foi por vezes difícil ser intelectual? De certa forma sim, e aqui está o maior preço que paguei por isso (mostra sua mão quase paralisada). Os grupos extremistas justificaram o atentado pelo seu livro As Crianças de Gebalawi, também conhecido por As Crianças de Nossa Rua, classificando-o de blasfematório? Esse livro não é blasfematório. Eu o discuti longamente com os mais cultos dos ulemas (profundos conhecedores dos escritos sagrados). E muitos deles o defenderam com grande fervor. Essa é uma questão de interpretação, de má interpretação do meu livro. O que o sr. pensa de um de seus livros que foi traduzido no Brasil, Uma Noite das Mil e Uma Noites? Esse é, na minha opinião, um dos melhores livros que escrevi. Nao há dúvida de que vocês têm bom gosto. As histórias de As Mil e Uma Noites estão entre os textos orientais mais apreciados no Brasil, o sr. pode falar um pouco sobre elas? Este livro é a melhor descrição de todo um período da história árabe: o dos Abassidas. Ele também é o precursor do que hoje chamam de realismo mágico. Tem uma grande influência sobre a literatura árabe contemporânea, especialmente em escritores como Tewfic El Hakim e Taha Hussein. Eu só me aproximei desse etilo relativamente tarde em meu percurso literário, pois eu comecei por um outro caminho, o do realismo. Quanto ao erotismo, abundante nessa obra, creio também que As Noites foram pioneiras de uma linha literaária muito presente no romance contemporâneo. A poesia tradicional árabe é um exemplo vivo do intenso erotismo desses tempos. Mas, As Noites são como um "documento histórico", relatando o aspecto erótico da civilização árabe. O que o sr. conhece da literatura latino-americana? Em outros tempos eu lia muito. Hoje em dia já não posso, porque minha visão não permite. Conheço os livros de Gabriel García Márquez e o seu realismo mágico, e me lembro agora de Cem Anos de Solidão. Li muito também, em outros tempos poetas como Pablo Neruda e Gabriela Mistral. Enfim, aqueles que foram traduzidos em nossa língua. E o que o senhor tem escrito nos últimos tempos? Eu escrevo o que permite a minha mão quase paralisada, ou seja, histórias minúsculas de um ou dois parágrafos. E me inspiro muito em meus próprios sonhos. Estes são como uma semente que eu desenvolvo, transformando numa árvore frutífera. É uma atitude que parece à primeira vista muito ligada ao inconsciente, mas que implica ao mesmo tempo numa grande participação da razão e da consciência. Para saber mais sobre Mahfuz acesse o site do escritor (em inglês): www.lemmus.demon.co.uk/mahfouz.htm

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