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Na TV paga, o Cinema Novo e a estética da fome

Cópia restaurada de Os Fuzis abre hoje mostra do Canal Brasil que tem também, entre outros títulos, A Falecida, de Leon Hirszman; O Desafio, de Paulo Cezar Saraceni; e A Grande Cidade, de Cacá Diegues

Por Agencia Estado
Atualização:

Os Fuzis, o mais radical dos filmes de Ruy Guerra, abre, hoje, no Canal Brasil a mostra Cinema Novo. O movimento de vanguarda - que conheceu seu ápice em 1964, quando Os Fuzis se somou a Deus e o Diabo e Vidas Secas - será (re)visto em seus diversos (e controvertidos) momentos. Ou seja, em sua fase fertilizadora (o Ciclo Baiano, com A Grande Feira e Tocaia no Asfalto, ambos de Roberto Pires; Barravento, de Glauber, e a vertente cepecista: Cinco Vezes Favela), em seu apogeu (Os Fuzis e Deus e Diabo, mas sem Vidas Secas, ausente do acervo do canal); em seu momento de crise (Terra em Transe, de Glauber) e em sua fase de diluição (Pindorama, de Jabor; Brasil Ano 2000, de Walter Lima Jr.; e Os Herdeiros, de Cacá Diegues). A programação, com 15 títulos, complementa-se com A Falecida, de Leon Hirszman; O Desafio, de Paulo Cezar Saraceni; A Grande Cidade, de Cacá Diegues; e Opinião Pública, de Arnaldo Jabor. O curador da mostra, o crítico Wilson Cunha, diretor do Canal Brasil, pretende que o canal seja uma "cinemateca eletrônica", capaz de ajudar a difundir o cinema brasileiro". A mostra (apesar da ausência de Vidas Secas e do seminal Maioria Absoluta, o Ilha das Flores cinema-novista) é de primeira. Não há dúvida que o movimento estético que deu visibilidade internacional ao cinema brasileiro começou a ser fertilizado na Bahia, com o grupo aglutinado por Glauber. O jovem baiano se fez cercar de Roberto Pires, Rex Schindler, Luíza Maranhão, Othon Bastos, Antônio Pitanga e Geraldo del Rey. Essa fase está representada na mostra por Barravento/Grande Feira/Tocaia. Glauber, o arauto do Cinema Novo, escreveu (aos 24 anos), a "bíblia" do movimento (Revisão Crítica do Cinema Brasileiro). Como bem observa Ismail Xavier, o cineasta baiano "busca avaliação do (cinema do) passado para legitimar o Cinema Novo no presente". E dá a Nelson Pereira, com Rio 40 Graus, a condição de pai espiritual do movimento, e a Humberto Mauro (com os filmes de Cataguazes e Ganga Bruta), a condição de avô. Nelson dizia que "o Cinema Novo passava a existir quando Glauber chegava ao Rio". O Rio fervia e a moçada jovem (Joaquim Pedro, Cacá, Leon, Coutinho, Marcos Faria, Flávio Migliaccio) - muitos deles estudantes universitários - militava no CPC-UNE (Centro Popular de Cultura). E unia esforços para realizar Cinco Vezes Favela, de 62. O filme está na mostra como o mais legítimo representante da vertente cepecista. O caldo cultural daqueles anos era dos mais nutritivos. Glauber arrumou as malas e foi para Milagres, sertão da Bahia, realizar Deus e o Diabo na Terra do Sol. Nelson filmou, nas Alagoas, Vidas Secas. Ruy, moçambicano, era visto ora com amor, ora com ódio, por Glauber. Com Miguel Torres na retaguarda, realizou Os Fuzis na mesma Milagres baiana. Dos três filmes, o mais radical e representativo da Estética da Fome (tese que Glauber escreveria e defenderia em Congresso de Cinema, na Itália/1965) é, por incrível que pareça, Os Fuzis. Ruy Guerra não faz concessão ao espectador. Perto de Os Fuzis, Vidas Secas e Deus e o Diabo são até "agradáveis" de se ver. No épico glauberiano, temos a beleza das roupas e adereços, a trilha em ritmo de cordel de Sérgio Ricardo (versos de Glauber), a música hipnótica de Villa-Lobos, os rostos bonitos de Del Rey, Yoná e Othon Bastos. E, também, a magnífica seqüência da escadaria do Monte Santo, que leva ao Beato e ao Encouraçado Potenkin, de Eisenstein. Em Vidas Secas, a beleza da fotografia de luz estourada de Luiz Carlos Barreto nos guia pelo sertão calcinado, seduzidos pelas palavras secas de Sinhá Vitória e Fabiano. E há o menino maior e o menino menor, com os quais criamos relação de amor e proteção. Há ainda a cachorra Baleia e o papagaio. E os bichos também comovem. O que temos em Os Fuzis? Primeiro, um sol que estoura a tela e nos cega, enquanto Antônio Pitanga, voz off, berra frases toscas, barrocas, de difícil assimilação. O sol dá lugar a árvores retorcidas, sem folha. Aparece um boi. Depois um lagarto. Entram os créditos. A música-tema é de Moacir Santos, talento que o país não conseguiu assimilar. O que se ouve ao longo de Os Fuzis é sempre perturbador. Universo sonoro feito da soma de benditos, ladainhas e rezas servirá de incômodo pano de fundo para o drama no sertão baiano. Os Fuzis são cinco homens: o sargento (Leonides Bayer) e quatro soldados (Nelson Xavier, Hugo Carvana, Paulo César Peréio e Ivan Cândido). Eles chegam a Milagres, povoado miserável, vítima de seca atroz, para defender os armazéns do comerciante local (Ruy Pollanah). No vilarejo, camponeses rezam em torno de um Beato e seu Boi Santo. Clamam, esfomeados, por chuva. Um personagem de Os Fuzis - o forasteiro Gaúcho (Átila Iório) - freqüenta a venda para tomar cachaça e conversar, enquanto espera a chegada de peça essencial para o conserto de seu avariado caminhão, carregado de cebolas. Gaúcho tentará sensibilizar o soldado Mário (Nélson Xavier) para o absurdo da missão deles (os fuzis) ali em Milagres. Afinal, vieram preservar depósitos de mantimentos de um único proprietário, enquanto centenas de famintos rezam. Em vão. Mário é mais sensível que os colegas, mas está ali para cumprir sua missão. Os caminhões chegam para retirar as mercadorias do armazém, enquanto a fome do povo chega ao paroxismo. Um camponês (Joel Barcellos, magro esquálido) entra na venda com criança morta nos braços. Pede um caixote para o enterro. Gaúcho pergunta se aquela criança é sua filha. O camponês diz que sim. O caminhoneiro sugere ao pai da criança morta que reaja. O camponês não esboça nenhuma reação. A situação levará Gaúcho ao descontrole. Ele toma o fuzil de um dos soldados (Carvana) e sai atirando nos caminhões que vieram recolher os mantimentos armazenados. A idealização do povo é visível em Cinco Vezes Favela e muitos outros filmes brasileiros. Mas em Os Fuzis, obra-prima que o tempo só faz melhorar, o povo é visto sem idealização. Os camponeses, sem ação, adoram um boi e rezam, em vez de tomar atitude contra a fome, a seca e a retirada dos mantimentos. Só depois da revolta (individual e inglória) de Gaúcho, que será caçado como animal pelos fuzis, os flagelados tomarão uma atitude: comerão a carne do boi, que perde sua "sacralidade", já que não traz chuva nem mantimentos. Para não dar consolo aos espectadores, Ruy Guerra fecha o filme com a voz gritada de Antônio Pitanga. Acaba o pesadelo do espectador. A Estética da Fome, que Glauber tirou de suas leituras de Josué de Castro e Franz Famon, tem em Os Fuzis sua mais completa tradução. Síntese - Do nível de Os Fuzis e Deus e o Diabo, há outro título na mostra do Canal Brasil: Terra em Transe (Glauber/67). Em carta a Jean-Claude Bernardet, nos meses que sucederam o vendaval provocado pelo filme, Glauber chegou a conclusão de raro poder de síntese: "Terra em Transe é um documentário sobre a metáfora." Festival Cinema Novo. Hoje, às 23h30, Os Fuzis, de Ruy Guerra, é o primeiro filme da mostra. Canal Brasil (operadoras/canais: NET, 66; SKY, 66).

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