Na Sonata, encontrou sua maior expressão

Beethoven, ao contrário de Chopin, não foi um exclusivista quanto aos meios de realização: enquanto êste escreveu só para plano, êle usou os meios correntes em sua época. Escreveu musica orquestral sinfônica, ópera, bailado, musica coral, grande variedade de musica instrumental para solos e conjuntos. Tal repertório implica necessariamente em variedade formal. Não houve, nesse campo, exclusividade, mas houve uma preferência inequívoca: a forma-sonata foi, para Beethoven, a expressão por excelencia. Revestiu-a das solenes cores orquestrais na sua musica sinfonica: realizou-a ao teclado, pela percussão expressiva do piano ainda imaturo em seu tempo, na série imortal das 32 Sonatas, nos Concertos; fê-la modeladora da sua musica de camara, trios, quartetos etc.; e nas aproximações entre instrumentos, tais piano e violino, piano e violoncelo, é ainda a forma-sonata que formalmente os solidariza. Na obra pianística, em particular, três grupos avultam: as Sonatas, os Concertos e as Variações, acrescidos da parte de piano em produção de camara.

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Por Caldeira Filho
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O Piano

 

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O piano da época de Beethoven estava ao término de uma fase que hoje pode ser considerada experimental. Da aplicação de martelos aos "saltarelli" do cravo por Bartolomeu Cristofori (1711), surgiu um instrumento capaz de tocar "col piano e col forte", processo expressivo impossível ao cravo. O novo instrumento, além de permitir gradações de intensidade, realizava as transições entre elas, o que é a alma da expressão musical. Tal se obtinha mediante variedade de "toucher" (toque), do que resultava todo um novo quadro expressivo: a sonoridade. Quanto à mecanica, sôbre que repousa grande parte das possibilidades de colorido, e à extensão do teclado, de que resulta aproveitamento de maior tessitura, continuaram e aperfeiçoaram o instrumento original diversos fabricantes, entre êles Silberman, Stein, Streicher, Backer. Todavia, o grande progresso em amplitude expressiva ocorreu pouco antes da morte de Beethoven: o escapamento duplo introduzido por Sebastien Erard em 1823, dispositivo que aumentou enormemente a flexibilidade do mecanismo, a possibilidade de controle mais exato do "toucher", e enriqueceu a paleta timbrica do piano de modo insuspeitado. Beethoven conheceu instrumentos bons, mas distantes ainda da perfeição futura que suas obras, mormente as ultimas, já estavam a exigir e para algumas das quais - a Sonata op. 111, por exemplo - o progresso atual do instrumento parece ainda insuficiente. Duas coisas surpreendem nesta obra: de um lado, a audácia da escrita para um instrumento incapaz ainda de realizá-la em tôda a sua plenitude estética; de outro, a prodigiosa audição mental - surdez completa nos ultimos anos - que lhe permitia conceber a construção sonora, imaginar-lhe os pormenores e, dentre êstes, selecionar com espírito não somente critico mas, e principalmente, estético, os efeitos instrumentais desejados. A escrita pianística dessa sonata, a ultima da série, feita por um surdo para um instrumento cuja insuficiência não poderia ter sido por êle ignorada, é algo assombroso. Já pensou alguém em sugerir ao piano o brilho de uma noite estrelada, como iniludivelmente sentimos em certos momentos das variações da Arietta dessa obra? Beethoven eleva-se aí a altura a que não chegaram Debussy nem Messiaen, não obstante a superioridade dos instrumentos que tinha sob os dedos e a riqueza de intenções de sonoridade, como se depreende da superabundancia de indicações de execução contidas nos seus textos. Dêsse ponto de vista - adivinhação de efeitos de timbre - é nas sonatas para piano que se encontram os momentos mais perfeitos da musica do autor.

 

Forma-Sonata

 

Sonata é a forma típica do classicismo, fixadora definitiva da musica instrumental autônoma. Consta, essencialmente, de 3 ou 4 partes ou tempos ou ainda movimentos, denominados segundo o caráter expressivo., O primeiro e o ultimo são em andamento rápido, por isso indicados "allegro" ou equivalente; dos dois outros, um é uma expansão subjetiva, com a indicação "andante", "largo" etc.; outro, é moderado, o minueto, depois substituido pelo "scherzo", em andamento rápido. Primeiro trecho obedece a um plano especial, constante de "exposição", em que se apresentam dois temas contrastantes em caráter e tom, unidos por uma ponte ou passagem modulante; um "desenvolvimento", trabalho composicional sôbre elementos temáticos, e uma "reexposição" da parte inicial, com ou sem modificações. A exposição dá-se em dualidade temática e tonal; o desenvolvimento, em mobilidade tonal, e a reexposição, em unidade temática e tonal, de vez que os dois temas se apresentam no mesmo tom. O andante tem em geral a forma "lied" (canção); o "scherzo" segue um corte ternário derivado do minueto e o "allegro" final é com frequencia uma "rondó, ou seja, alternação de refrão e estrofe.

Este esquema serviu ao classicismo, à composição regulada pelo gosto dos mecenas. O romantico Beethoven é já de outra época. A Revolução Francesa apanha-o ainda jovem, e as consequencias dela, após o declinio napoleonico, encontram um homem maduro, estuante de voluntariedade criadora, cuja totalidade humana, cerceada para os mestres do periodo anterior, ansiava por uma expressão também total, universal. O meio era outro, os impulsos nacionais e sociais determinavam novas expressões artisticas. Exigia-se a criação de novas formas ou alargamento das existentes. Em musica, a forma por excelencia era a forma-sonata. Subjugou-a Beethoven e fê-la docil às imposições do novo espirito nele encarnado. Este novo espírito, alma de um novo homem, alterou a ordem dos tempos da forma-sonata, deixando de iniciá-la com o Allegro classico sempre que o plano expressivo da composição o exigisse. Assim, inicia a Sonata n.º 12, em já bemol maior, com um Tema e variações e nela inclui uma Marcha Funebre; um noturno abre a Sonata n.º 14, chamada "Luar" e é ao seu ultimo movimento que aplica a forma típica do Allegro. E, nos allegros iniciais, por que repetir a exposição? Por que redizer as coisas? Por uma questão de habito, tanto mais que exposição e desenvolvimento se justapunham, sendo por isso separaveis. Beethoven logo foge ao habito e passa da exposição ao desenvolvimento por uma transição organica, aumentando a coesão da obra, impossibilitando, material e funcionalmente, a repetição. Um exemplo admiravel se encontra na Sonata Appassionata. A totalidade humana a ser traduzida em musica exigiu a criação de temas de intenso conteudo psicologico. Cada um deles já não é mais um desenho puramente musical; é uma personalidade, um temperamento, uma vontade a ser tratada como elemento composicional. Certos temas são em si verdadeiros dramas, principalmente aqueles escritos como harpejos, como nas Sonatas n.º 1, n.º 5, o final da de n.º 14 (Luar) e o da Appassionata; outros são concentrados, "ensimesmados", a lembrar a granitica imobilidade de "O pensador" de Rodin, cheia de energia prestes a explodir, como se observa no Allegro da op. 111. E ele transforma a coda em amplo desenvolvimento terminal, introduz a fuga e a grande variação, como nas Sonatas op. 106, 109, 110 e 111; associa à orquestra sinfonica uma orquestra vocal, como na imortal 9ª Sinfonia; e, além de outras modificações, atribui também função organica à Introdução, o que caracteriza expressivamente a Sonata Patetica e a de n.º 32, op. 111. A forma se amplia à dimensão do artista.

A expressão é que levou Beethoven a uma contribuição construtiva relativamente à forma-sonata. Não quis enriquecê-la, quis exprimir-se. Agiu como alguém que respira profundamente a plenos pulmões, não para mostrar-se atleta, mas para fugir à sufocação. Há pois exagero em considerar em Beethoven só o sofrimento, o lado passional, a exacerbação da dor romantica. Ele foi um sofredor, mas foi antes um artista, um criador de coisas artificiais, expressão, primordialmente, de sua capacidade criadora que necessariamente tendia à realização e se concretizava em obras de diverso carater expressivo.

 

Sonatas para piano

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A sonata beethoveniana não é somente desilusão de amor ou revolta contra o destino. É originalmente um trabalho tecnico, um artesanato em continua evolução no sentido de crescente dominio da materia para sua transformação em expressão. Assim, há sonatas emotivamente indiferentes aos estados de espirito de então do autor. Arte é artificio, é criação humana de algo não existente na natureza. A fantasia e a imaginação criadora têm também os seus direitos, que não são poucos.

Não se nega a predominancia do subjetivismo na musica romantica nem a correspondencia emotiva entre estados de espirito do compositor e o significado expressivo da obra. Mas tem-se de admitir a possibilidade de um autor escrever uma tragedia sem necessariamente, estar sofrendo horrores. O assunto pode ser-lhe impessoal; ele o trabalha nas suas virtualidades de estruturação no sentido de construir uma obra de arte.

A serie das sonatas pianisticas constitui, historica e esteticamente, a espinha dorsal da criação de Beethoven. A organicidade do conjunto é exemplo magnifico da evolução criadora. Desde a primeira, escrita aos 25 anos, até a ultima, composta em 1821-22, acentua-se continuamente a presença daquele algo tragico que lhe marcará a vida e a obra. Não é comum ser-se tragico aos 25 anos. Mas comparem-se a energia do tema inicial da primeira, retilineamente ascendente qual viril e jovem afirmação de vontade e de esperança, e a linha angulosa, quebrada, como que mutilada, que constitui a Introdução da ultima, com seu desenho retorcido, e cuja ansia de ascensão, sempre frustrada, dá origem aos sucessivos e dolorosos impulsos com que se inicia o 1º tema. Da aproximação emerge a linha mestra da vida do Mestre: a constancia do conflito entre os "dois principios", pois, como diria mais tarde o nosso poeta, "a vida é luta renhida, viver é lutar". Mas não é somente o principio tragico que informa a criação de Beethoven. É exato que sua obra exprime realmente tal sentimento. Idéias diferentes surgem, porém, numerosas, não somente como resultantes de um substrato psicologico, mas também, observou-se acima, como livre criação de idéias e temas contrastantes para estruturação e equilibrio da obra de arte musical. Tudo isso é muito humano, e por isso é que em Beethoven são uma só coisa o homem, aquele que "é", e o artista, aquele que trabalha a materia e a transforma em mensagem. Daí a razão de serem intensissimos os componentes desta - semantica e estetica - e inseparaveis na inteligibilidade da sua criação. Detenhamo-nos agora um pouco em algumas das principais Sonatas.

- Sonata n.º 8, op. 13, chamada "Patetica" (comp. 1798-99). É a primeira em que Beethoven emprega a Introdução, não como simples fator decorativo, mas como elemento organico que, pelo conteudo tematico e expressivo, influi sôbre toda a obra, é uma sonata cielica, denominação dada a obras cujos temas principais derivam de um só fragmento ou "celula". Profundamente dramatico, o Allegro parece conter o segredo do inicio da surdez que será o martirio da sua vida. Estrutura-se sôbre um conflito expressivo, jôgo de contrastes tematicos que, sob a denominação "luta entre os dois principios", informou a estética do mestre.

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- Sonata n.º 12, op. 26, em lá bemol maior (1801-02). Pertence ao periodo inicial da segunda maneira ou segundo estilo de Beethoven. Um plano expressivo diferente fez que ele a iniciasse com um Andante e cinco variações, embora não fosse o primeiro a fazê-lo. Seguem-se Scherzo, Marcha Funebre, sôbre um tema de notas repetidas - "o destino que bate à porta" - figuração que aparece também no inicio da 5ª Sinfonia. Esta sonata, cuja organicidade tem sido discutida, vale pela sua beleza intrinseca e pelas experiencias que a diversidade de carater impõe ao piano no campo da sonoridade.

- Sonata, n.º 14, op. 27 n.º 2 "Luar" (1801-02) - Data do momento tragico em que confessa a Amenda e a Wegler, amigos diletos, a surdez que o atormenta e que poderia vir a arruinar-lhe inteiramente a personalidade de musical. É a época também do famoso Testamento de Heiligenstadt, encontrado após sua morte, um dos mais dramaticos e dolorosos poemas jamais ditados pelo sofrimento do homem e do artista. A Sonata Luar (apelido devido ao poeta Rellstab) mostra uma faceta não frequente em Beethoven: a criação da peça caracteristica, tipo Noturno, genero elevado por Chopin à maior altura. A economia expressiva da obra é conduzida no sentido de um extenso crescendo emocional. O corte tripartido A-B-A passa a ser a progressão dinamica A-B-C, pelo que a unidade da sonata resulta da logica de um processo ou desenvolvimento que encontra na propria imanencia a sua razão de ser. Visto isso, o luar pode ser esquecido...

- Sonata n.º 15, op. 28 "Pastoral" (1801). Dividida em Allegro, Andante, Scherzo e final Rondo, traduz um outro aspecto da estetica de Beethoven: o amor pela natureza, que se mostrará mais amplamente na 6ª Sinfonia, também chamada Pastoral, e que, nesta Sonata, resulta em leve analogia ambientadora.

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- Sonata n.º 23, op. 57 "Appassionata" (1803). Divide-se em Allegro assai, Andante tema com variações) e Allegro ma non troppo, antecedido de uma preparação constante de asperos acordes repetidos, num ritmo ofegante de admirável efeito expressivo. Deve-se notar a diferença entre o tema em harpejos desta Sonata, que parecem oscilar em suave balanço, e o tema também em harpejos, mas vigorosamente ascendentes, da primeira sonata da coleção, a op. 2 n. 1 em fá menor.

E não é por acaso que a Appassionata está também em fá menor. A sua incomparavel força expressiva, a beleza dos seus temas e a mestria com que foi realizada, fizeram dela uma obra inesquecivel, de imperecedouro valor artistico e humano. A esta segunda maneira pertence ainda, entre outras obras, a Sonata chamada Aurora.

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- Sonata n.º 12, op. 26, em lá bemol (1821). A terceira maneira de Beethoven - iniciada, nas sonatas, com a de n.º 24, op. 78, à qual pertence também a sonata "L'adieu" - culmina com a ultima produção no genero, a grandiosa op. 111. Consta de Introdução Maestoso, Allegro con brio appassionato e Arietta (com variazioni). Aludi já à diferença de carater tematico entre a Sonata n.1, de 1975, e a de n. 32. Um intervalo de 26 anos separa as duas obras, separa os dois Beethoven, o da juventude feliz em Viena e o da amargurada velhice, também em Viena. A Introdução da ultima mostra uma plenitude de energia criadora que assombra: a 9ª Sinfonia está prestes a aparecer. Iniciada com uma serie de interrogações vazadas em figurações admiraveis pelo ritmo e pelo desenho anguloso, parece a Introdução fechar-se depois sobre si mesmo até explodir com imenso impulso de força titanesca, em um primeiro tema, cuja intensidade dramatica encontra raro paralelo. As aproximações e analogias expressivas são de longe superadas pelo absoluto dominio da materia, pela arte que lhe permite criar, com umas poucas notas, um dos mais poderosos temas da literatura musical, e pelo modo magistral com que o desenvolve numa construção sonora realmente soberba. A Arietta é de uma sublimidade incomparavel como concepção e realização. Contém tudo o que o ser humano pode revelar em sentimento, fé, filosofia, resignação, etc.; mas contém também tudo quanto um compositor é capaz de fazer no seu "métier", no dominio da materia com que trabalha, na exploração de tudo quanto se contém nesse fenomeno tão simples chamado som. Um som é um som, disse Strawinsky; por isso, um som é o infinito.

Os Concertos

Como já se mencionou, o Concerto é uma peça em forma-sonata escrita para um instrumento solista e orquestra. Neste tipo de sonata há variedade infinita de possibilidades quanto a plano e estruturação. Efetivamente, tudo quanto é de interesse composicional e estetico pode ser distribuido entre os dois personagens - o individual e o coletivo - sendo praticamente infinitas também as possibilidades de realização. Concertos há em que piano e orquestra iniciam juntos a apresentação tematica; em outros, o piano espera longa exposição orquestral; em outros ainda os diferentes episodios são divididos entre os dois. Privativo do solista é o elemento tecnico, trecho de virtuosidade pessoal chamado "cadencia", presente em geral no primeiro e no ultimo movimentos. O Concerto é uma forma algo espetacular e sua evolução tem-se processsado no sentido de crescente articulação organica entre o instrumento solista e a orquestra. Beethoven escreveu cinco Concertos para piano entre 1795 e 1809. São obras de juventude e maturidade e situam-se na primeira e segunda maneiras do Mestre. A linha de evolução deles é analoga á das Sonatas.

- Concerto n.º 1 (1797). É na realidade, o segundo, pois um primeiro fora composto em 1795, e publicado depois como n.º 2. O Concerto n. 1, em dó maior, divide-se em Allegro con brio, Largo e Allegro scherzando (rondó). Pelo carater dos temas, clareza, simplicidade da orquestração e por uma leveza expressiva que se mantém mesmo no Largo, trecho central - belissima melodia em lá bemol - e pela epoca da composição, essa pagina é bem representativa da juventude do autor.

- Concerto n. 2 - Data de 1795 e, relativamente ao anterior, parece mais profundo, mais vivo tematicamente, embora não fuja ás caracteristicas gerais do autor nessa epoca. Compreende Allegro con brio, Adagio e Molto allegro. Como de habito, os temas do Allegro inicial contrastam pela estrutura: o primeiro é construido em harpejo vivamente ritmado; o segundo canta docemente por graus conjuntos. A melodia do Adagio é trabalhada em apojaturas, antecipações, interrupções romanticas, que lhe dão particular expressividade, em contraste com o brilho do final, nitidamente coreografico no seu ritmo 6/8 trabalhado em sincopas.

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- Concerto n. 3 (1800). Escrito no tom de dó menor, o 1.º tema do Allegro con brio, energico, conciso, autoritario, que informa toda a obra, prenuncia já o heroismo e a grandeza das obras posteriores, embora deva ser dado em discreto "piano" para mais tarde ser apresentado plenamente pelo solista. Os outros trechos são o Largo, de rara beleza, e o Allegro, amplo rondó, cujo tema principal é traido quando interpretado de modo gracioso. Há ali uma afirmação ritmico-melodia que não pode ser posta em duvida. Leveza não é fraqueza.

- Concerto n.º 4, em sol maior (1805). Êste concerto é dividido em Allegro moderato, Andante con moto e final Vivace. Desde o início do primeiro movimento, sente-se o ouvinte em outro plano, em outra atmosfera, em outro Beethoven. Acordes repetidos em suave meia tinta criam imediatamente uma atmosfera de mistério da qual emerge o quase recitativo que é o curto segundo movimento, cuja melancolia se desvanece na incomparável delicadeza do tema do final, tema que vale por si, como uma flor que não precisa fazer parte de uma "corbeille" para ser admirada. Êste é o Concerto da bem-aventurança, da tranquilidade de espirito, da comunhão com aquilo que a música tem de mais elevado: a pura espiritualidade. As relações piano-orquestra fogem aos planos dos Concertos anteriores e estão denunciando uma mudança de concepção, pela diferente funcionalidade atribuida a cada um dos elementos. Êste mutuamente se completam em significação e por isso reciprocamente se valorizam na economia expressiva da obra. Já não se pode falar em piano solista e orquestra acompanhante, tal a fusão orgânica aí realizada por Beethoven.

- Concerto n.º 5, em mi bemol maior (1805) - Inicia-se em grandeza e pompa com a cadência ao piano (apoiada em solene acorde dado pela orquestra) tratada em amplos desenhos em harpejos, o que situa imediatamente o Concêrto numa atmosfera tôda particular, exterior e vistosa. Divide-se em Allegro, Adágio un poco mosso e Allegro. Caracteriza-se essa obra principalmente pela beleza e propriedade de escrita dos temas que soam admiravelmente ao piano; pela simplicidade de estrutura, baseada na oposição entre temas ritmicos e melódicos, numa revelação esplêndida do que seja ritmo e do que seja melodia, e pela amplitude dada à escrita pianística que aí atinge aspectos realmente triunfais.

Variações

Importam ainda na obra pianística de Beethoven as Variações. a angústia do espaço obriga a breve menção aos dois grupos principais: as 32 Variações em dó menor e as Variações sôbre uma Valsa de Diabelli. Representam aquelas a transformação principalmente expressiva de um tema ao longo de 32 quadros correspondentes cada um a uma virtualidade estética do desenho original. As de Diabelli constituem exemplo magistral do tratamento dos vários tipos de variação, de que o momento mais elevado parece ser o da Variação n.º 20, em que a melodia temática, por natureza analítica, é condensada, sintetizada, reduzida, com um mínimo de notas, a um máximo de densidade, de concentração da energia harmônica. E é interessante observar como de temas tão diferentes tenha podido o autor extrair a mesma qualidade composicional, apreender-lhes a substancialidade musical em grau tão elevado e elevá-los a um nível de criação realmente surpreendente. De um simples fragmento êle faz uma obra-prima. Realmente, um som é um som. E por isso um som é o infinito. E Beethoven sabia disso.

Conclusão

A obra pianística de Beethoven é importante, também, nas peças em que o piano se associa a outros instrumentos. Êsse repertório foge, porém, ao objeto destas notas. Tem sido animadora a divulgação ultimamente feita a propósito de bicentenário do Mestre. Possa ela contribuir para que nosso ensino de música venha a possuir condições de levar o ouvinte para além das correspondências de sentimento, além da análise formal e introduzi-lo no amago da criação, no turbilhão do processo composicional, porque aí é que está a música - o som feito expressão - e é preciso dar uma idéia de como isto se faz. A divulgação da obra será mais necessária ainda. Por isso sejam lembrados aqui os nomes de dois de seus saudosos intérpretes: a pianista Alice Serva, que antes de 1900, então jovem aluna de Chiaffarelli, executou a serie completa das Sonatas, e Fritz Jank, que a apresentou numerosas vêzes, deixou-a perpetuada em gravações e chegou a tocar tôda a produção para piano de Beethoven. É nosso dever reconhecer-lhes o mérito.

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