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Na contramão da fé

Tem cinema que vira igreja? Pois o contrário (e muito mais) também pode acontecer

Por Humberto Werneck
Atualização:

Falei aqui, faz uma semana, de cinemas que se convertem à religião, passando a acolher fiéis onde imperavam cinéfilos - e eis que lá de Minas, sempre atento, o Fernando Dolabela, amigo desde os nossos 11 anos, autoridade mais que nacional em empreendedorismo, veio acudir a minha abrangente ignorância. Nesse movimento, contou ele, há também contramão: igrejas de variados credos que mudam de ramo, cedendo espaço para atividades mais terrenas, eventualmente pecaminosas. Numa sumária lambiscada na internet, topei com igrejas que foram transformadas em livraria, cervejaria, casa de degustação e venda de vinhos, supermercado, academia de ginástica e até, valha-nos Deus, boates - uma das quais, em Nova York, dando por encerrada ali a busca da Virtude, chafurdou no Pecado, notabilizando-se como antro fervente do sexo, das drogas e, quase à guisa de pretexto, do rock’n’roll. Haja vendilhões de templos! Em meio a tão diversificada conversão, tomei conhecimento da existência de uma capela transmudada em cinema. Coisa de estrangeiros ímpios? Nada: aconteceu aqui em Búzios, no litoral fluminense, e não consta que tenha havido reclamações quando, há cinco anos, aquela modesta sucursal da casa de Deus deu lugar ao Cine Teatro da Rasa. Até o momento, só não encontrei (mas pode haver, preciso consultar o Fernando) igreja que tenha mudado de credo, passando de pentecostal a católica, ou vice-versa. Também não consegui saber o que pode ter levado padres e pastores a desistir do ramo religioso; a pura e simples perda de fé, como sucede às vezes no rebanho? Ou, na leitura do balanço, a constatação de que nem sempre templo é dinheiro? Igualmente desconheço se algum dos desistentes, nessa melancólica encruzilhada, chegou a afixar no frontispício uma tabuleta de “vende-se” ou “aluga-se”. Vamos aos fatos, e comecemos pela tal discoteca nova-iorquina. Até para desestimular apressadinhos, seja dito que não adianta correr, pois a antiga Limelight é hoje, com o mesmo nome, uma academia de ginástica. Na verdade, trata-se apenas do uso mais recente de uma construção erguida - em plena América, mas em estilo gótico... - em meados do século 19. Desconsagrada no começo dos anos 70, aquele reduto da Igreja Episcopal da Sagrada Comunhão foi um centro de reabilitação de drogados e alcoólatras, antes de se tornar exatamente o contrário disso, na década seguinte, quando se instalou ali a discoteca.  A farra crepitou até 1996, pois que o promoter da casa matou e esquartejou um dos habitués, traficante de drogas. Reabriu anos mais tarde com o nome de Avalon, para a certa altura virar supermercado, o qual, há dois anos, ufa, cedeu espaço à Limelight Fitness. O que mais está por vir?, pode perguntar-se quem passe por aquele cambiante ponto do distrito de Chelsea. Bem menos acidentada tem sido a história de outra discoteca, a Paradiso, vicejante entre as paredes do que foi uma igreja de Amsterdam, erguida no século 19. Ali, além de sacolejos na pista, os fiéis frequentadores têm à disposição desfiles de moda, sessões de cinema, palestras científicas e festivais de poesia. Também na Holanda, o mesmo clima de tranquilidade pode ser desfrutado em duas igrejas desativadas nas quais o livro santo deu lugar ao livro, simplesmente - as livrarias Selexyz, em Maastricht, e Waanders in de Broeren, em Zwolle, acomodadas em edificações dos séculos 13 e 15, respectivamente. Bem parecido com o que se vê, faz alguns anos, em Óbidos, vila portuguesa com pouco mais de 3 mil habitantes, numa construção do século 18 onde há muito já não se rezava missa e hoje é livraria, cujo nome, ao menos, evoca santidade: Santiago. Se a fé remove montanhas, como parecem crer as empreiteiras, houve quem removesse igreja de uma cidade a outra. Coisa de americano, quem duvidaria? Não foi lá que alguém, na década de 30, teve a ideia de construir um convento nada menos que medieval, The Cloisters, ao norte de Nova York, agora extensão do Metropolitan Museum of Art? Pois algo ainda mais radical se passaria em anos recentes, quando, viajando de carro em Ohio, um viticultor viu em Shalersville um templo metodista desativado, e se encantou por ele. Com determinação de recém-convertido, não teve dúvida: mandou demolir a construção, do ano de 1892, para reerguê-la, tijolo por tijolo, em sua cidade, Geneva. Dizem que na casa, templo da degustação enológica, espírito divino e espírito de vinho podem perfeitamente harmonizar-se. No mesmo capítulo etílico, inteirei-me da existência, também nos Estados Unidos, de uma cervejaria, a Church Brew Works, de Pittsburgh, literalmente nascida das cinzas de uma igreja batista incendiada em 1915. “E no oitavo dia... o homem criou a cerveja”, trombeteia o site do estabelecimento. Os proprietários restauraram com esmero as ruínas do antigo templo, que estivera abandonado por 80 anos. Entre outras relíquias, existe ali, intacto, um confessionário, ao que se saiba sem uso específico, e certamente não por falta de matéria-prima espiritual. 

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