Na casa de Glass

A sorridente Zuri me leva para a cozinha, no subsolo da casa, em Manhattan. Philip Glass está colocando as crianças para dormir. Zuri, de 21 anos, é neta de Glass e sobrinha de Marlowe e Cameron, de 8 e 6 anos, filhos do quarto e já encerrado casamento do compositor de 73, irmãos de Juliet, de 41, e Zachary, de 38. A não ser por um súbito grito de Marlowe, acordado pelo irmão, a entrevista corre com tranquilidade que faz de um dos mais celebrados artistas da música contemporânea um interlocutor distinto de sua obra. Se Glass, que acha velho o termo minimalismo, favorece repetições e estruturas cíclicas, sua conversa fácil muda de rumo e envereda por estradas vicinais. Bastou explicar que o artista plástico Carlito Carvalhosa, que o convidou a colaborar na obra A Soma dos Dias, que será inaugurada hoje na Pinacoteca do Estado (leia mais abaixo), era o motivo do pedido da entrevista e ele abriu sua casa para falar de qualquer assunto que desperte seu apetite onívoro pelas artes. O músico vai executar na segunda e na terça-feira composições suas em piano no interior da instalação de Carvalhosa em São Paulo - e ainda, no último dia, ministrará master class com os alunos da Tom Jobim - Escola de Música.  

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Como decidiu colaborar com o Carlito Carvalhosa?Eu havia visto o trabalho dele antes. Tenho uma maquete de papel do museu, que ele fez para eu ter uma ideia. Mas, você sabe que já fiz isto antes.Desde o começo, em Nova York, o senhor colaborava com artistas contemporâneos. Sim, mais recentemente, em 2008, eu toquei na grande exibição do Richard Serra no Grand Palais, em Paris. Eu não faço mais com tanta frequência as performances ao vivo, como esta que vou fazer com o Carlito. Eu tocava muito em galerias. Afinal era o único lugar onde nos deixavam tocar! Eu era muito aliado ao mundo da arte naquela época porque era a base da minha audiência, o meu público cresceu dali.E, à medida que o público de música me aceitou, comecei a me apresentar nas salas de concerto tradicionais. O meu começo foi quase exclusivamente ligado às artes plásticas.O senhor escreveu a trilha sonora para o filme Nosso Lar. Conhecia a história do Chico Xavier?Não conhecia. Eles me telefonaram, só isso. A produtora ligou e disse, posso ir a Nova York falar sobre o filme? E eu disse, claro, falo com prazer.O senhor quis conhecer melhor a história do Chico Xavier?Aprendi alguma coisa. Sabe, há histórias semelhantes por aqui. Eu gostei do diretor Wagner de Assis e não me cabe julgar o tipo de fé contida ali. O diretor demonstrou entusiasmo, eu tinha algum tempo disponível e escrevi.Entre as inúmeras trilhas que compôs, o senhor se sente atraído pelos filmes que lidam com espiritualidade?Realmente compus algumas trilhas ligadas ao tema. Uma seria o Kundun, do diretor Martin Scorsese. Mas terminei ontem uma outra, muito interessante, para um filme chamado Rebirth (Renascer), sobre o ataque às Torres Gêmeas. O diretor é Jim Whitaker. O filme foi feito para o museu permanente que está sendo construído no Ground Zero. Não é sobre política, propaganda ideológica. É sobre o sofrimento humano, algo que se perdeu em meio à raiva geral e à guerra no Iraque. É sobre a dor. Como se vive com ela, como se supera a dor e como se encontra de novo a alegria de viver.O senhor segue um processo criativo semelhante quando está compondo trilhas? Kundun, de Martin Scorsese, seria um exemplo de processo de trabalho? No caso de Kundun, escrevi a trilha baseado no roteiro. Eu conhecia a roteirista Melissa Mathison. Eu telefonei para o Scorsese e disse "Marty, eu tenho que escrever esta trilha." Ele ficou intrigado, "Por quê?" E eu disse: "Eu conheço esta gente, tenho conexões com músicos e sei o que fazer." E expliquei: "A música vai ser a porta de entrada para o filme." O assunto é tão exótico, tão desconhecido, você vai filmar coisas que nem existem mais. Então, a passagem para tudo isso vai ser a música. Eu fui logo mandando a música para o set e a Thelma (Thelma Schoonmaker, editora da maioria dos filmes do diretor) editava o filme já com música. Seria a única maneira de haver uma relação entre história e música. Comecei a mandar gravações para o set no Marrocos e o Marty contou que os autores aplaudiam.É comum a sua música ser classificada de minimalista. E o senhor discorda do rótulo.Não me incomodo. Mas a dificuldade é, se você diz que alguém está compondo música minimalista e aí toca a trilha de As Horas ... (Glass faz uma cara de espanto). Cadê o minimalismo? A referência é a um período musical de 1967 a 1976, até Einstein On The Beach (a parceria de Glass com o diretor de teatro Robert Wilson). A música mudou a partir daí. Então é como você descrever hoje um dos primeiros namorados que teve como um cara ainda bonitão de 20 e poucos anos. A música eletrônica também passa por uma evolução?O tipo de música eletrônica pura não existe mais. Ela se tornou integrada a outros gêneros. Os músicos jovens usam a eletrônica como um elemento. Outro pode ser a performance. E a fronteira entre a música artística e a comercial está desaparecendo. Fui um dos poucos que não se preocupou com a distinção. Foi assim que acabei compondo trilhas. A música para cinema é o que é. A realidade é que os pedidos para reescrever composição são ditados pelos produtores, não é nem o diretor. E o senhor vai e reescreve.Com certeza. Ou você concorda ou desiste e vai embora. Eles não querem saber se você é o Stravinsky. Como o senhor vê o colapso da indústria tradicional do disco?Fico contente que tenha acontecido. Bem, primeiro tenho que admitir que fui muito bem tratado por gente como o Bob Hurwitz, da Nonesuch. Mas quando você tem um contato com gravadora, querem um disco por ano. Não falo só de mim, mas era bem claro que havia muitos compositores sem gravadora. A porta de entrada para o mundo do disco era muito apertada e controlada por um punhado de pessoas. O que substituiu as gravadoras não é um mundo perfeito mas, veja, podemos fazer download, qualquer um pode produzir sua gravação. Um artista jovem pode procurar seu público, promover a gravação em concertos e as pessoas compram online.O senhor concorda que há mais música ao vivo agora?Sim, concordo. Ninguém ganha mais dinheiro com álbuns! O Ray Davies está tocando por aí, Paul Simon, Paul McCartney, os Rolling Stones. Eu já passei dos 70 e faço uns 40, 50 concertos por ano. Nova York está cheia de clubes e palcos de todos os tamanhos. O colapso da indústria do disco deu este impulso para a música ao vivo.

 

 

 

 

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