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Músico que corteja as sombras

Britânico Tricky fala sobre sua raiz jamaicana, rebelião e do retorno com o Massive Attack

Por Jotabê Medeiros
Atualização:

Numa região sombria, feita de uma música que sobrevive de presságios e arrepios, reina um britânico tatuado, de aspecto junkie e que faz shows envoltos em um fog denso. Mas Tricky, pessoalmente, não parece ser do tipo que brinca o Halloween fora de hora.Nascido Adrian Thaws em Knowle West, subúrbio de Bristol, Inglaterra, o homem que foi uma das primeiras vozes do trip hop, nos anos 1990, está em fase luminosa. Mudou-se de Londres para Paris, faz caminhadas pela Rive Gauche, almoça em bistrôs floridos. Mas o som continua sombrio: seu disco mais recente, Mixed Race, acaba de ser lançado no Brasil pelo selo Lab344. De Paris, Tricky falou ao Estado sobre o novo trabalho, e revelou que já gravou três novas canções com seu antigo (e referencial) grupo, o Massive Attack - com quem não se relacionava havia mais de uma década.Um dos cabeças do Massive Attack, Daddy G. disse, em dezembro, que as relações de Tricky com sua banda mudaram, estão "amaciadas" agora, após longa separação. E isso é fato, reafirma Tricky. "Eles me ligaram, pediram para fazer uns trabalhos para o Massive Attack. Então, liguei para o DJ Milo, em Nova York. Ele é como se fosse da família", lembra o músico."Começamos a trabalhar de novo juntos, mas de forma separada. Eu e o DJ Milo começamos a preparar canções. Basicamente, estamos no estúdio, mas sem pressão. Está sendo muito mais fácil que antes. Nós sabemos aonde queremos chegar, e vamos embora quando queremos. Estivemos no estúdio por cerca de uma semana trabalhando juntos. Eu toquei, compus, escrevi letras com ele. Gravamos três canções. Acho que vai ser divertido."Tricky contou que o Massive Attack já tem um retorno agendado para o Brasil. "Mas eu, infelizmente, não poderei ir com eles." Há uma possibilidade de o britânico vir a São Paulo ainda este ano, para um festival - chegaram a mencionar o Planeta Terra, mas a Assessoria de Imprensa do festival negou.O disco novo de Tricky tem apelo para a pista, sem apelar aos clichês. Em Early Bird, Tricky faz uma transfusão de sangue do jazz para o hip-hop. Usa música de caixinhas de música para abrir Murder Weapon, e uma versão mono de Garota de Ipanema antes de Come to Me. E Time to Dance revitaliza os bons tempos do electro. Já a tensão social aparece com potência em duas faixas: Ghetto Stars e Bristol to London.Tricky conhece como ninguém a realidade dos bairros mais pobres de Londres, e a condição de exilado cultural - é filho de jamaicano. Ele não vê solução a curto prazo para os conflitos na Inglaterra. "Acho que é compreensível, e acho que vai acontecer mais e mais no mundo. Porque os ricos estão ficando mais ricos e os pobres mais pobres. Como Bob Marley disse, um homem com fome é um homem com raiva", disse Tricky.Ele crê numa relação de efeito e causa nos acontecimentos. "Bem, é como um bumerangue voltando. Se você direciona energia ruim para alguma coisa, ela volta para você, sabe como é? Olhe para a Inglaterra e os Estados Unidos ao longo da história. Colonização, interferência em assuntos privados dos outros países. O México e os países da América Latina têm sido ferrados por países como Estados Unidos e Inglaterra. Se você ferra com os recursos naturais de um país, e deixa as pessoas sem dinheiro, sem poder ver suas famílias, é o que acontece. É isso que está ocorrendo agora na Inglaterra: está voltando. Nos tornamos uma sociedade muito esnobe, primeiro com a MTV, com a cultura das celebridades, a publicidade mostrando mulheres bem cuidadas com diamantes, os carrões. As pessoas correm atrás como um ideal, seja exaurindo toda sua energia e dinheiro para conseguir aquilo, ou roubando outras pessoas."Falando sobre sua nova canção, Ghetto Stars, que aborda a questão do gangsterismo juvenil e a solidão de uma vida levada pelo atalho errado, ele diz que acha engraçada a coincidência de temas. "Eu vejo o sentimento desses jovens, e sinto que é algo que eu já senti, que não me é alheio ou estranho. Eu já sofri a discriminação da polícia. Vivendo na Inglaterra, até hoje tenho de me manter esperto sobre a maneira de fazer as coisas, porque para a polícia você não tem direitos. Ir para o aeroporto foi a maneira que encontrei de me manter afastado, mas isso não me manteve afastado. A pressão que eles põem em você é enorme. Há muita pressão nas ruas sobre os jovens, cara! Uma sociedade de gângsteres cria uma juventude de gângsteres."A respeito de Hakim, a canção central do seu álbum, uma canção que mistura a vertigem da eletrônica com a música raï argelina, Tricky explica: "Hakim é um cara de Paris que eu conheci em Marselha. Ele toca na banda de outro cara chamado Rashi Taha, é um guitarrista incrível. A gente sempre fuma juntos, vagueia por bares. Estávamos fazendo uns vocais no estúdio do meu apartamento, e Hakim cantou uma canção apenas para testar o microfone. Não era para entrar no álbum, mas quando ouvi aquilo de novo, vi que não podia ficar de fora. Tem uma vibe muito estranha, e especial".Há uma bela cantora no disco, Franky Riley. "Ela é minha nova Martina", diz ele - referindo-se à antiga parceira Martina Topley-Bird, artista que chegou a ser chamada, pela revista Vibe, como a "Marlene Dietrich negra do soul". O sabor brasileiro na introdução de Come to Me é apenas musical, Tricky não gosta de futebol. "Eu prefiro asssistir ao seu jiu-jitsu do que futebol. É uma grande forma de arte. Em Los Angeles, eu costumava ir à academia dos Gracie para ver treinos, e via também os vídeos", lembra.Tricky ri ao saber que o cantor inglês Finley Quaye foi apresentado aqui, nos anos 1990, como seu tio. "Ele não é meu parente. Isso foi criado pela imprensa. Mas é um cara legal. Não é meu tio, mas pode ter algum parentesco comigo, talvez seja meio primo. O sobrenome dele não é Quaye, é McGowan, que é o último nome da minha mãe. É um grande compositor, e amigo meu. É muito parecido com o irmão da minha mãe, quem sabe não é parente?", diverte-se.Tricky diz que se empenha em trazer para a música todos os que puder encorajar. "Não há músicos na minha família. Meu pai costumava tocar o washboard, meu avô tocava folk music. Mas eu tento trazer todos para o estúdio: meus sobrinhos, meus primos. Eu digo a todos: é um bom trabalho, vocês vão viajar, vão conhecer pessoas. Não esperem se tornar milionários ou pop stars, mas é um trabalho digno.""Não acho que o reggae tenha influência sobre mim, mas sim a cultura. Meu pai era jamaicano, reggae é minha raiz, mas minha música vai para outro lado", diz o cantor, que também não dá bola para o rótulo que tornou famoso o Massive Attack, o trip hop. "Trip hop, você acredita nisso? Não importa. O que nós fizemos, e que estamos fazendo agora, é levar a música adiante. Tentando achar alguma música que seja nova. E boa."MIXED RACETrickyLançamento Lab344, R$ 27,90

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