Museu virtual sobre Gilberto Gil revela álbum escondido há 40 anos

Com mais de 900 vídeos e gravações, além de 41 mil imagens, projeto 'O Ritmo de Gil' traz as faixas de um disco gravado em 1982, em Nova York, mas jamais lançado pela gravadora

PUBLICIDADE

Foto do author Julio Maria
Por Julio Maria
Atualização:

Gilberto Gil ganha, a partir desta terça-feira, 14, o maior acervo digital dedicado a um artista vivo. Prestes a completar 80 anos (que serão comemorados no próximo dia 26), Gil terá detalhes de sua obra artística e muitas informações biográficas concentradas em um ambiente que a empresa Google anunciou pela manhã dentre outras muitas ações pensadas para o Brasil. O projeto tem o nome de O Ritmo de Gil, que se tornou também a primeira retrospectiva sobre um artista vivo feita pela plataforma. Os números, tão fortemente ostentados pela Google, realmente impressionam: são mais de 41 mil imagens e documentos e um total de 900 vídeos e gravações sobre seu trajeto.

Gil durante lançamento de projeto feito pela empresa Google Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Dos itens dispostos a partir de hoje no campo g.co/gilbertogil, ao menos um traz a força do ineditismo discográfico. Trata-se das faixas de um álbum gravado pelo artista em 1982 em Nova York, encontrado há dois anos, segundo o artista, durante a garimpagem de seu material. O projeto que deveria levar o nome de Jump For Joy estava em duas fitas cassete com o nome das canções descritas na capa, todas em inglês. You Need Love, Jump For Joy, Estrela (Star), Fill Up The Night With Music e Come On Back Tomorrow são algumas delas. A produção foi de Ralph McDonald e o álbum sairia pela gravadora Warner. Havia ainda participações especiais de figuras lendárias, conforme Gil mesmo revelou, como a do baterista Steve Gadd, a do baixista Marcus Miller e da cantora Roberta Flack.

A investida em um disco feito no exterior foi ideia do presidente da Warner no Brasil, André Midani (morto em 2019), que pensou ser o momento de Gil ter um álbum feito para o mercado norte-americano. O produtor contratado pela Warner para tocar o projeto foi Ralph McDonald, um percussionista ligado ao pessoal de Bill Withers e do saxofonista Grover Washington Jr. Isso explica o time que Ralph levou ao estúdio: o baterista Steve Gadd, o baixista Marcus Miller, o tecladista Richard Tee (autor da planetária In Your Eyes), o próprio Groover Washington Jr. e a cantora Roberta Flack. E fica inevitável não pedir aos leitores que gostam de música e que queiram saber mais sobre onde Gil foi se meter naquele 1982: dê um Google.

A canção que abre o projeto, You Need Love, já tem a estética sonora que ampara a voz de Gil e remete ao típico som dos estúdios de Nova York dos anos 80 (a mesma que Lincoln Olivetti começava a trazer ao Brasil). Muito reverb, muitos teclados, muita percussão e Marcus Miller mandando dúzias de slaps, as “estilingadas” hoje tão datadas. Jump For Joy, na sequência, começa com Roberta Flack, que a divide com Gil. Mas algo soa facilitado demais, pop demais, distante de Gil e próximo a uma Roberta que vinha poderosa desde 1977, quando gravou Closer I Get To You. Depois da bilíngue Estrela (Star), tem a curiosa Fill Up The Night With Music, um AOR de Gil, a categoria de canção que os norte-americanos chamam de “Adulta Orientada para o Rádio”, os love songs das rádios românticas da madrugada.

Come Back Tomorrow e Take a Holiday têm o acento do afoxé marcante no afropop de Gil, que Steve Gadd imagina ter de fazer na bateria e que o tecladista Richard Tee não entende, e Somebody Likes Me é caribenha até onde pode ser na diluição daqueles arranjos. É interessante perceber a sutil negociação de entendimentos (ou na falta deles) do que era a música pop brasileira até ali, quando os estúdios norte-americanos davam as cartas sobretudo a quem entrasse por suas portas querendo fazer “um álbum norte-americano”. Moon And Star Girl é uma visita a Lua e Estrela, de Caetano, e When the Wind Blows seria lançada no álbum Um Banda Um como Deixar Você.

Gil em evento da Google Foto: REUTERS/Amanda Perobelli

A iniciativa da divisão Google Arts & Culture teve a coordenação da jornalista Chris Fuscaldo, pesquisadora musical e CEO da editora Garota FM Books, e mais 15 profissionais que mapearam mais de 49 mil imagens e escreveu mais de 140 mil exposições. São textos assinados por nomes como Ricardo Schott, Ceci Alves, Kamille Viola, Lucas Vieira, Tito Guedes e Laura Zandonadi.

Há muita exploração a ser feita na coleção. Uma delas sugere um passeio em três partes que separam o material em “a música”, “o homem” e “a influência internacional”. Gil diz que dentre as passagens que o emocionam pessoalmente estão as relacionadas à sua infância e sua família. Ele falou também sobre as reflexões que acaba fazendo a respeito do mundo digital. “São essas casinhas nas quais muitas pessoas passaram a viver.” Ele diz ser um colaborador convicto para que esses hospedeiros de vida e de obra levem seus feitos e o ressignifiquem, mas fala não estar preparado para “estabelecer residência fixa” no mundo virtual. “Eu não vou manter essa casa oferecendo café da manhã, almoço e jantar, mas vou continuar contribuindo. Mesmo que eu não queira viver nessas casas, minha vida acaba preenchendo muitas delas.” e encerrou: “Eu pertenço a esse mundo, essa grande família nacional e mundial. Essa sempre foi a minha ambição e eu espero que aconteça.” 

Publicidade

Gil fala sobre sua relação com a internet em evento da Google Foto: TIAGO QUEIROZ / ESTADÃO

Gil diz não se lembrar o que fez com que o disco não saísse. “Foi por alguma razão. Eu falava sobre melhorias que ele poderia ter com relação à arte, mas não sei o que levou a esse engavetamento.” Não seria incomum se fosse seu próprio crivo o motivo do cancelamento de uma sonoridade que ainda hoje se desfruta mais pelos ouvidos da curiosidade. Sinais de um tempo em que tudo o que se guardou ou rejeitou no passado, e por qualquer motivo, se torne um ativo valioso. 

Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.