Murakami sai do Japão para escrever

Sai no Brasil Caçando Carneiros (1982), de Haruki Murakami, que reproduz uma sociedade no auge da euforia econômica. Em outro livro, ele registra o atentado com o letal gás sarin, no ar-condicionado do metrô de Tóquio, entrevistando as vítimas. E sempre sai do país para escrever

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Por Agencia Estado
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Em 1982, o Japão não era mais identificado por gueixas, samurais ou cerejeiras. Na verdade, o país vivia um momento de euforia econômica, o que provocou mudanças extremas no comportamento na população, estimulada a consumir obsessivamente, criando assim um mundo vazio. Naquele ano, o escritor Haruki Murakami lançou o livro Caçando Carneiros, em que reproduzia justamente uma sociedade ainda confusa sobre o rumo a tomar. O livro, lançado agora pela Editora Estação Liberdade (336 páginas, R$ 28), provocou uma série de interpretações: ao tratar de personagens que suam a camisa pela carreira, bebem demais e navegam por casamentos desfeitos, Murakami foi tachado de "pós-modernista" por alguns e "ocidentalizado" por outros, principalmente pelo fato de ter vivido nos Estados Unidos, onde se tornou admirador de dois importantes Raymonds, Chandler e Carver, cujas obras traduziu para o japonês. Nos anos 90, a situação se reverteu - a economia japonesa estourou, desestabilizando ainda mais uma sociedade já frágil. Na manhã do dia 20 de março de 1995, a descoberta de feridas ainda não cicatrizadas: membros da seita Shinrikyo contaminaram o sistema de ar-condicionado do metrô de Tóquio com o letal gás sarin, provocando 11 mortos e 3.796 feridos. O terror revelava ainda uma população espiritualmente indefesa. Murakami entrevistou sobreviventes, em busca de detalhes de uma chaga moderna ainda desconhecida. O resultado foi Underground - The Tokyo Gas Attack and the Japanese Psyche (Metrô - O Ataque de Gás em Tóquio e a Psique Japonesa), recentemente lançado com estardalhaço nos Estados Unidos. Apesar da aparente distinção entre suas duas obras, Murakami observa perigosas semelhanças ao retratar uma sociedade em que opressores e oprimidos pertencem à mesma casta, como conta na seguinte entrevista ao Estado, feita por e-mail. Agência Estado - O senhor se considera um escritor pós-modernista? Haruki Murakami - Honestamente, não sei o que significa "pós-modernismo". Apenas escrevo o que quero escrever. Encontrei meu próprio estilo, certo dia, e venho desenvolvendo-o desde então. Não tenho interesse em qualquer "ismo". Mas, posso assegurar uma coisa: não estou interessado em escrever um livro puramente "realista". Isto me aborrece, acredite. O narrador em primeira pessoa de "Caçando Carneiros" pode ser considerado um bom exemplo de difusão de ego? O narrador/protagonista dessa novela representa uma parte de mim que eu não conheço. Na verdade, não tenho idéia quanto eu realmente sei sobre esse desconhecido pedaço de mim. Nos anos 80, o mundo acompanhou o boom econômico do Japão, mas o consumismo frenético daquela época não é explícito em "Caçando Carneiros". Por quê? Trata-se de um livro sobre um carneiro, não sobre economia. Mas as pessoas são freneticamente consumidas em meu livro. Suponho que você poderia pensar sobre isso como uma metáfora. Por que as cartas que aparecem no livro trazem um tom tão desesperado? Não sei. Talvez eu prefira a comunicação entre as pessoas na forma escrita. O protagonista revela-se inábil tanto para tomar uma posição como para julgar. Isto torna-se claro quando é abandonado pela esposa. Ela se torna, portanto, seu carrasco? Escrevi esse livro há aproximadamente 20 anos e temo ter esquecido muitas coisas sobre ele. Mas, revendo, tenho a impressão que o protagonista toma algumas decisões ao longo da história, do começo ao fim. E parece que você teve uma impressão completamente diferente dele. É interessante. Ninguém pode viver um minuto sem decidir sobre algo. É como respirar. Algumas pessoas respiram de forma pesada, visível; outras não. Por que a humilhação de um homem comum é repetidamente retratada na atual literatura japonesa? Não sei muito sobre o trabalho dos outros. Mas, em minha opinião, as pessoas são mais ou menos humilhadas em todos os lugares desse planeta, dia e noite, atualmente. Pode-se interpretar o carneiro como um símbolo da sociedade ocidental por se tratar de uma animal alheio aos japoneses? Há 58 significados de "carneiro" nesse livro. A sua é uma delas. Por que há uma certa antipatia com o nome das pessoas, em "Caçando Carneiros"? Para mim, era algo irritante ter de inventar nomes naquela época. Nomes são ridículos, estúpidos e não significam nada na maioria dos casos. E eu não achava que precisávamos deles. Mas, subitamente, mudei de idéia e comecei a dar nomes para meus personagens. Isso foi há dez anos e felizmente me ajudou a ampliar minha visão. Underground mostra uma sociedade japonesa muito diferente em relação a "Caçando Carneiros". Na sua opinião, quais foram as principais mudanças? A sociedade que descrevi em Underground era aquela da qual eu queria escapar quando era jovem. As pessoas que foram atacadas com gás venenoso por membros de uma seita pertecem ao sistema, o sistema japonês, e eu quis ficar fora disso. O mesmo fez, acredito, o protagonista de Caçando Carneiros. Nesse respeito, nada mudou. A única diferença é que eu quis mirar o acontecimento do metrô de forma direta. Acho que é minha obrigação. O Japão tem hoje um grande número de cultos registrados. Por que a sociedade não poderia então oferecer uma alternativa atraente? As pessoas são estranhas e esquisitas em certos casos, com ou sem religião. O mundo é assim, portanto, as pessoas têm de se adaptar. É difícil manter a sanidade nessas circunstâncias, o que as fazem preferir pertencer a certos grupos sólidos. Seja um culto, seja o sistema. Como novelista e individualista, eu busco uma alternativa. Por que você prefere escrever seus livros longe do Japão? Porque tenho mais facilidade em me concentrar no trabalho quando não estou lá. Pode ser em qualquer lugar, menos no Japão. Assim, sinto-me mais livre. Esta é uma das coisas boas da minha vida. Você está escrevendo algo no momento? Do que se trata? Murakami - Sim, estou preparando uma nova novela. Só posso dizer que trata de florestas e sombras.

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