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?Múmia? reúne cacos de realidade

Por Agencia Estado
Atualização:

Está anotado numa discreta nota de pé de página de A Múmia de Rosto Dourado do Rio de Janeiro: ?Escreva, preencha tudo com palavras, o deserto com pirâmides e construções da mente.? Já não se sabe mais, ao certo, quem se dirige a quem, restando só a frase bruta. A Múmia é um conjunto de frases amputadas, radicais, porque Fernando Monteiro é um escritor que desconfia da literatura. ?Eu padeço de uma grande desconfiança em relação à máquina de narrar. Li muito, e tudo me levou a duvidar do que nos é contado.? Ele recorda de Joseph Conrad que, num romance como Lord Jim, já tratava de ilustrar essa dúvida. ?A história que é narrada por Marlow não merece confiança, Conrad nos diz nas entrelinhas.? Apesar da hesitação persistente, que é na verdade a base de sua escrita, Monteiro continua a ser um praticante fiel dessa ?arte morta?, como Ezra Pound definiu certa vez a literatura. Foi com esse estado de espírito repartido entre a descrença e a suspeita que ele escreveu sua Múmia. Com a postura, ele admite, do sujeito que ?ao pé de um afresco em ruínas, dispõe apenas de uns cacos para entender uma cena?. Estado de esfacelamento, aliás, que define o homem contemporâneo. Tudo tão junto (Internet, TV a cabo, jatos supersônicos), mas tão separado. ?Ali, no meio e na dobra das coisas, talvez fosse possível surpreender um caco de realidade bruta e confusa?, diz. Ao escritor resta, portanto, uma parca esperança. Ela é tudo o que ele tem, é seu material. É, talvez, a literatura. Fernando Monteiro inspirou-se, entre outras fontes, na teoria da montagem do cineasta russo Sergei Eisenstein: ?Da justaposição de um plano a outro resulta sempre um terceiro qualquer que nunca sabemos o que vai ser.? Como se, desses fragmentos difusos, viesse a emergir uma inteligência própria da narrativa que ultrapassasse o próprio autor. Ele enfatiza: ?Uma inteligência que escaparia até para mim?. Vai mais longe: ?Participo, eu próprio, desse sentimento de estar alijado do centro misterioso da Múmia. Há qualquer porta ali que também me barra, a mim.? Foi a partir desse impedimento, desse acesso barrado, que Fernando Monteiro escreveu seu misterioso livro. Um romance que parece ter sido escrito apesar de seu autor, ou talvez até contra ele. Difícil situar A Múmia nas coordenadas corriqueiras do tempo e do espaço. Pode-se dizer, de modo grosseiro: é um romance que se passa na Rússia czarista, na Lisboa do salazarismo, no Egito dos faraós. Mas se estará apenas patinando sobre a casca, sem perfurá-la. O romance se situaria, ao contrário, num espaço/tempo inexistente. É a simultaneidade esvaziada do mundo de hoje novamente a agir. ?Partindo de Paris ? via Anchorage ? para Pequim, no Concorde, você chegará à capital da China na mesma hora do café do mesmo dia em que tomou o avião. Ou seja, sua longa viagem foi engolida pela ausência de tempo, numa espécie de sentido anti-horário que o devolverá à mesma hora da partida?, Monteiro recorda. Após o desembarque em Pequim, as muitas horas de vôo não estarão em lugar algum, ?senão na sua mente e no seu coração apertados contra a irrealidade do buraco negro em que ? parece ? tudo é de fato para se perder?. É sobre esse espaço/tempo ausentes que a literatura trabalha. Sobre algo inexistente. É feita de um nada. Universo à parte - Fernando Monteiro, o escritor, se coloca também num universo à parte ? e por isso é muito surpreendente, e até chocante, que sua literatura venha do Recife, do nordeste, apesar de João Cabral habitualmente associados ao regionalismo e às narrativas naturalistas. Mas não há, a rigor, um Monteiro a pilotar o livro. ?Uma vez que o livro tenta narrar a si mesmo, conforme a intenção já confessada, é natural que o eu esteja ou pareça desaparecido da Múmia?. Seu desejo é o de ?ler o livro como se eu não o tivesse escrito?. Monteiro desconfia daqueles escritores com mente clara e exata ? Thomas Mann, por exemplo. A ele, prefere os outros Thomas da sombra, Thomas Bernard e, Thomas (e não Tom) Wolfe. Reconhece ainda a ascendência de nomes como Melville, Hawthorne, Nabokov, Henry James, mas prefere em geral os escritores laterais. Gosta das Novelas das Masmorras, de Octávio de Faria, quase completamente esquecidas ? e não de seus romances mais celebrados da Tragédia Burguesa. Gosta de Lúcio Cardoso, mas não todo, de Breno Acioly, ?ainda mais esquecido do que Osman Lins?, e não se afasta do ?iceberg? Machado, do qual ainda só conhecemos uma ponta. ?A rigor, A Múmia não trata propriamente de um russo que viveu no Brasil, conforme as sinopses resumem, e teriam que resumir, para consumo de notícias?, assegura. Mas de que trata o livro então? ?Talvez seja o primeiro livro que o leitor deva definir, pegando todas as peças soltas e encaixando nesse escrínio da capa, que é uma caixa de charuto reaproveitada por mim?. Monteiro gosta de valer-se das caixas dos charutos baianos que fuma para fazer bricolages. ?Talvez A Múmia do Rosto Dourado do Rio de Janeiro esteja mais fora ? na capa ? do que dentro do sarcófago desse romance?, ele diz.

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