27 de abril de 2013 | 02h08
Os dois exércitos se engalfinham desde o mês passado, quando uma jovem da Tunísia, Amina Tyler, de 19 anos, postou na internet fotos nua da cintura para cima, com slogans sobre os seios: "my body is my own" (conhecido bordão feminista) ou "f*ck your morals" (empunhando um cigarrinho). Antes que acendesse outro, a batata já assava na Comissão de Promoção da Virtude, órgão do regime tunisiano que zela pela orientação moral e religiosa da população. Almi Adel, à frente da comissão, decretou que Amina deveria ser punida segundo o código da sharia, merecendo 80 a 100 chibatadas para começar e apedrejamento até a morte para completar o serviço. Mas, como estava de bom humor naquele dia, ordenou que ela fosse recolhida a um hospital psiquiátrico, "para se curar".
As louras do Femen (parecem primas da Sharapova) endiabraram. Lançaram o Topless Jihad Day, com o alerta de que muitas muçulmanas irão se despir nos próximos tempos. A jihad pipoca na Europa. Aleksandra Shevchenko, líder "femenista", foi presa dias atrás ao literalmente peitar a polícia alemã diante da chanceler Angela Merkel e do presidente russo Vladimir Putin (este só perde para Berlusconi, "o bastardo", no ódio das ativistas). Muçulmanas dão o troco. Propagam o Muslimah Pride Day, sucesso no Facebook, e a campanha Muslim Women Against Femen.
Para quem não vive com seios à mostra nem se cobre com uma barraca de camping para ir ao supermercado, o embate parece bizarro. Mas não é. O Femen nasceu denunciando o turismo sexual na Ucrânia, depois incorporou a crítica ao patriarcado. Tal como o poeta, a organização sacou que beleza é fundamental... à causa. Suas ativistas são jovens, esbeltas, usam guirlandas de flores na cabeça, como fadinhas, e chutam os genitais da polícia, com coturnos. Têm a noção do espetáculo quando presas por atentado à ordem pública, delito do qual se safam. Só que Amina corre risco: passou por testes de virgindade, está sob vigilância da comissão e sua família tornou-se alvo do desprezo social. Com uma rebeldia tão pulsante quanto seus hormônios, Amina foi recrutada por "femenistas" de Paris.
É interessante ver a reação ao Femen. Nas redes sociais, muçulmanas defendem o corpo da mulher sob a veste tradicional - "my hijab, my choice, my dignity", postou uma delas. Outras dizem que não precisam ser salvas por feministas colonizadas, "agentes da guerra ideológica que dissemina a islamofobia no mundo". São defendidas por homens que as chamam de "irmãs" - "go and stay strong, sisters". Na região de Khar, no Paquistão, um ermo habitado por radicais e drones, a muçulmana Badam Zari ousa disputar um cargo político. Tem o apoio do marido, a estupefação da tribo e uma torcida que vem de longe. Aonde isso vai dar? Sabe-se lá. Porém, na gritaria da internet, mundos distantes se confrontam. Convicções arraigadas, idem. E tudo se passa no campo das representações do feminino. Terá sido sempre assim?
Guerreiras, virgens, sacerdotisas, feiticeiras, parece que a humanidade caminha atada às nossas vestes. Em 1995, em meio à balbúrdia da Conferência da ONU para Mulheres, na China, me vi frente a frente com uma intelectual saudita, coberta dos pés à cabeça. Nunca tinha estado com alguém naqueles trajes. Manifestei interesse jornalístico e propus que conversássemos. A acadêmica teve um surto. Disse que estava farta das feministas, da conferência, dos chineses e, me encarando com o único naco descoberto do corpo, perguntou: "Sabe qual é a diferença entre nós duas? Eu sou feliz". Deu as costas, deslocando no ar a pesada massa de panos. Senti o baque. Mas logo saí caminhando pelas ruas de Beijing, de bem com a minha felicidade imperfeita.
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