Muito além dos tormentos de Alex

Apesar da fama internacional, o prolífico escritor inglês, de múltiplos talentos, continua subestimado em sua genialidade

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Por Caetano W. Galindo
Atualização:

Ele foi o “pequeno Wilson”, que passou a vida encarando o “grande Deus”. Foi o sargento Wilson, do exército colonial de Sua Majestade.

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Ele era Mr. Wilson, o professor de inglês que trabalhou na Inglaterra, na Malásia e em Brunei. Foi o linguista que inventou um idioma paleolítico para o filme A Guerra do Fogo.

Ele foi o poliglota que aprendeu persa, russo e traduziu poesia inglesa para o malaio.

Ele foi o paciente que recebeu um dia um diagnóstico de câncer no cérebro e, desesperado, resolveu escrever montes de livros, o mais rápido possível, para tentar garantir um dinheirinho post mortem para a mulher e a filha. Ele foi o paciente que recebeu um diagnóstico equivocado.

Ele era o maestro Burgess, que compôs óperas, sonatas, quartetos, sinfonias. Foi o roteirista do Jesus de Nazaré, de Zeffirelli.

Carreiras, profissões, caminhos.

Mas acima de tudo o homem John Burgess Wilson (Harpurhey, Manchester, 25 de fevereiro de 1917-Londres, 22 de novembro de 1993) foi duas coisas.

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De um lado, o prolífico escritor (nunca ia dormir sem ter escrito pelo menos mil palavras) que produziu livros acadêmicos, jornalismo, crítica musical, contos, poesia, romances, biografias, uma autobiografia (em dois volumes, O Pequeno Wilson e o Grande Deus e You’ve Had Your Time) e mais de 30 romances, alguns sob o pseudônimo de Joseph Kell (em seu ro romance de estreia, Time for a Tiger, de 1956, usou pela primeira o “Anthony”, que acrescentara após o John original ao ser crismado).

De outro lado, ele sem dúvida foi o sujeito que ostentava o pior penteado da história da literatura. (Não é possível falar seriamente de alguém que escreveu Enderby por Dentro, um dos livros mais engraçados deste mundinho azul, sem recorrer ao humor.) 

*

Contudo, nem o penteado (por incrível que pareça) nem aquela outra fieira de carreiras respondem pela sobrevivência esperneante do nome de Burgess até os dias de hoje, quase 20 anos depois da sua morte, aos 76 anos, em 1993. 

São os romances, camarada. 

São os romances.

Mas a graça no fundo é que a singularíssima produção do Burgess romancista só pôde existir, e só pôde existir tal como é, porque ele foi aquelas outras coisas todas. 

Sem o falso tumor, não haveria romancista. Ponto.

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Sem a experiência no Oriente, não haveria a “trilogia malaia”. Sem a vivência em terra estrangeira, o poliglota e o linguista não teriam tido tanto material, o que não teria possibilitado a ideia do nadsat russo-inglês de Laranja Mecânica.

No entanto, sem, principalmente, o músico, o romancista não teria tido um ouvido tão apurado e um apreço tão grande pela estrutura geral das obras (ele moldou um romance todo, Mozart and the Wolf Gang, na Sinfonia 40 de Mozart, e um outro, Napoleon Symphony: A Novel in Four Movements, sobre a Heroica, de Beethoven); sem o maestro, o prosador não seria dotado de uma estima tão acentuada pelo som e pelos quadros desse som.

É bobagem, porém, fingir que mesmo esse pacote tão gordo, que mesmo esse caldo tão grosso explique, em qualquer medida, o surgimento e a possibilidade da obra de Burgess. Há que se recorrer à boa e velha - e velha por demais, segundo alguns - noção de gênio. 

*

Eu, como muitos leitores, cheguei a Burgess via Laranja Mecânica. Na verdade, foi o primeiro livro que li em inglês, decidido a arriscar por querer ouvir aquela música no original e por já conhecer mais que bem a trama. Pois eu, como muitos leitores, cheguei ao livro pelo filme.

A estranha distopia sarcástica e ácida em que o jovem baderneiro Alex se diverte enquanto busca excessos de sexo, drogas e violência, ao mesmo tempo em que se entrega de corpo e alma a excessos de Beethoven, influenciou e influencia gerações e gerações de leitores. 

Mas o livro seria pouco interessante se, porventura, se resumisse a isso. Afinal, o problema ético central é que Alex acaba se vendo traído por seus drugues e preso e, na prisão, recebe a oferta de comutar sua pena pela participação num estranho experimento behaviorista, que pretende condicioná-lo a odiar a violência. O dito Método Ludovico consiste em injetar nas veias de Alex certos químicos que lhe causam náusea e uma sensação de pânico, ao mesmo tempo em que ele é exposto a vídeos de ultraviolência, a imagens que anteriormente lhe provocavam excitação e prazer (a imagem de Malcolm McDowell preso a uma cadeira, com os olhos mantidos abertos por ferragens é uma das mais icônicas da história do cinema).

A cultura pop era algo que Burgess via com muito receio: daí o papel redentor de Beethoven no livro. Ela, entretanto, é um dos grandes temas de uma obra que, bem ou mal, publicada em 1962, caricatura a mesma Inglaterra que via nascer os Beatles e os Stones. Além disso, livre-arbítrio, ética, violência, literatura (um escritor será o agente da liberdade de Alex), amadurecimento (especialmente no famoso último capítulo que Kubrick não usou no filme) são temas que garantem que a sobrevivência do livro se deva a muito mais que ao nadsat (adolescente). E a competência com que tudo isso se trança no romance me fez, e fez a muitos, ir buscar mais. E, naquele universo de mais de 50 livros, há de fato muito mais.

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Apenas na ficção, há os dois retratos biográficos lapidares dos rivais Shakespeare e Marlowe (Nada como o Sol e A Dead Man in Deptford), sendo que este último se conclui com a mais bela descrição do assassinato de Marlowe que se pode imaginar.

Há o estranhíssimo romance de espionagem escatológico (no sentido religioso, e não no sentido American Pie do termo) Tremor of Intent.

Há a incrível trilogia Enderby, da qual apenas o primeiro volume foi traduzido no Brasil (exatamente Enderby por Dentro), num trabalho primoroso de Paulo Henriques Britto.

Há os romances inspirados por Mozart e Beethoven, há a curiosíssima odisseia em oitava rima que é seu último romance, Byrne. 

E não dá para esquecer o resto. 

Além de uma história da literatura inglesa, por exemplo, apenas sobre Joyce ele produziu dois livros fundamentais, sendo que um deles, Homem Comum Enfim, ainda é a melhor introdução à obra do autor de Ulysses disponível em português.

Recentemente se disse, quando Poderes Terrenos ficou empatado numa eleição para escolher o romance inglês mais importante do último quarto do século 20, que esse período ainda será conhecido como a era de Burgess... Pode bem ser. Poucos escritores terão sido tão produtivos. Poucos outros terão mantido o nível de qualidade e invenção que ele sustentou numa carreira tão variada.

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Mas pouquíssimos terão feito as duas coisas.

E, no entanto, há que se reconhecer que Burgess continua algo subestimado, tanto cá quanto lá.

*

Tenho para mim que talvez até mesmo o sucesso pop da adaptação de Laranja Mecânica possa ter-lhe pespegado certa imagem de coisa passageira. Ou, como se aventa nos meios críticos britânicos, ele pode ter sido vítima da maldição do autor cômico, ou no mínimo da leve uruca que envolve o autor com uma visão intrinsecamente cômica de mundo e de arte e de homem. E eles precisam ser mais levados a sério.

Ele precisaria ser levado mais a sério.

Porque acima de tudo há justamente aquele Poderes Terrenos, épico bizarro sobre um escritor de segunda e um religioso de terceira, que cobrem todo o século 20, conhecem tudo e a todos e deveriam plantar o nome do autor bem firmemente nos cânones do tempo.

Sozinho, podia bastar. E ainda ele tem dezenas de irmãos...

Laranja Mecânica é um livro genial. Não reste dúvida. Burgess, contudo, está muito longe de se resumir a ele. Como eu mesmo demorei um pouco a saber.

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Foi preciso, por exemplo, que Cristovão Tezza um dia me dissesse que Poderes Terrenos tinha uma das melhores primeiras frases de todos os tempos, para eu me deparar com: “Era a tarde do meu octogésimo primeiro aniversário e eu estava na cama com o meu catamito quando Ali anunciou que o arcebispo tinha chegado para falar comigo.”

Há que se levar um bufão desse nível mais a sério do que o sério que se quer.

CAETANO W. GALINDO É PROFESSOR DA UFPR E TRADUTOR. VERTEU PARA O PORTUGUÊS ULYSSES, DE JAMES JOYCE, ENTRE OUTROS TÍTULOS

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