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Cultura, comportamento, noite e gente em São Paulo

Mudança de apartamento

O fato da mudança acontecer durante a pandemia do coronavírus só está agregando um traço dramático a algo que, por si só, já é bastante intenso

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Por Gilberto Amendola
Atualização:

Essa é uma das últimas crônicas que escrevo neste apartamento. Depois de quase 18 anos morando no mesmo endereço, deixo o lugar que foi o cenário dos meus piores e melhores momentos. 

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Pelo apartamento 23, passaram todos os meus amigos. Aqui, vivi o suficiente para encher as prateleiras da memória com essas bugigangas emocionais que um adulto costuma carregar. 

O fato da mudança acontecer durante a pandemia do coronavírus só está agregando um traço dramático a algo que, por si só, já é bastante intenso. 

Não sei se consigo lidar com tantas coisas práticas de uma só vez. Para muitos não deve ser nada de mais, mas me sinto movendo um Everest de pequenos (e médios) pepinos. Eis o bololô de ações, contra-ações e obrigações da minha mudança: “Procurar apartamento na internet. Mandar e-mail. Marcar visita. O corretor pode no fim de semana? Presta atenção no piso. Tem piso solto. Cabe no orçamento? O taco está novo? E a vizinhança? Tem que dar sorte com vizinho. O apartamento tem vazamento? E armário? Os quartos têm armário? Olha que armário é caro.

Aí vem a proposta, a contraproposta, os contratempos e o contrato. As letras miúdas e as letras graúdas que não fazem sentido. Quanto é o IPTU? Precisa de fiador? Prefere seguro-fiança? Vou amolar meu pai com essa história de fiador. Precisa reconhecer firma?

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Reconhecer firma! Em que ano estamos? Ir ao cartório no meio da pandemia. Tem aglomeração no cartório? Pra que isso? Eu nem tenho uma assinatura decente. Olha o carimbo! Carimba logo duas vezes. A sala é boa, mas a cozinha é pequena demais. Será que cabe a máquina de lavar? Vamos tirar as medidas da máquina de lavar! Eu tinha que ter visto isso antes. Onde eu coloco a televisão? Não tem lugar para essa prateleira. Será que eu preciso trocar o fogão? Eu nem cozinho. Tenho que ligar para o serviço de TV a cabo. Tenho que instalar a internet logo para não atrapalhar meu home office. Cuidado com o computador do jornal.

Quando vou pegar as chaves? Quando vou devolver as chaves? Preciso pintar o apartamento antes de devolver. Que cor é essa? Não, não, antes de pintar tem que tampar os buracos dos quadros. Como tem maçaneta quebrada? Em que lugar a gente compra maçaneta? Preciso chamar um chaveiro. Preciso arrumar o banheiro. Será que vou precisar pagar dois aluguéis? Alguém vai querer esse sofá. O cachorro destruiu, mas talvez se aproveite alguma coisa. Quanto custa um sofá? Quero trocar de cama, mas não tenho grana. E os livros? Quais devo doar? Esse, aquele, nenhum... Eu preciso me desfazer das coisas, mas as coisas são parte de mim. Não quero acumular, mas sou fruto de toda essa acumulação. Essa camiseta não serve mais em mim. Vou doar tudo.

Não quero mais nada. Coragem. Lembrete: comprar plástico bolha. Tenho uma centena de garrafas para embalar. Máximo cuidado para não quebrar nada. Alguma coisa eu vou quebrar. Esse copo era da minha avó. Já era. Quebrou. O pessoal do caminhão não é muito cuidadoso. Eles estão de máscara. Outro lembrete: trocar titularidade das contas. Como é que faz isso? Pela internet? Mas tô sem internet. Será que o zelador do meu novo prédio pode me ajudar. Não consigo lidar com esses móveis de montar. Nunca montei direito. Preciso de ajuda. Quanto? Cinquentinha. O que eu faço com essa chave philips? Que raios é uma chave philips? Vou morar sozinho e não sei usar uma chave philips. Quando eu vou chamar meu novo apartamento de lar? Quando vence o aluguel?

Essa mudança nunca termina. Olha quanta caixa, quanta coisa fora do lugar. Pra que tudo isso? Tem até foto da ex, conta de 2011, jornal velho, poema ruim, romance inacabado, bilhete de suicídio. Esse apartamento ainda vai ficar com a minha cara? O que é a minha cara? Isso nunca vai ter fim. Espero que o cachorro acostume. Socorro. Alguém viu essa chave phillips por aí?” 

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