Morte de Whitney Houston é tragédia anunciada

PUBLICIDADE

Por João Marcello Bôscoli
Atualização:

Whitney Houston foi duplamente abençoada. Tinha uma habilidade incomum para cantar e, ao mesmo tempo, uma voz extraordinária. Nem sempre é assim. Há cantores muito afinados, cheios de balanço, charme e bossa, mas não possuem um timbre privilegiado. E vice-versa. Timbres lindos sem muito swing ou senso de interpretação. Os músicos da antiga os chamam de canários: um som encantador comandado por um cérebro minúsculo. No ofício de cantar, Whitney tinha tudo. Basta vê-la interpretar o hino americano em 1991. É algo completamente fora do comum. Ela, como a maioria das pessoas geniais, faz o extraordinário parecer fácil, natural. Na terra das cantoras que cantam de verdade, apesar da profusão de lançamentos, não apareceu ninguém com metade do seu talento vocal. Em vários aspectos inspira muitas outras surgidas depois: desde o jeito de cantar até o repertório, passando pelo (hoje) irritante hábito de usar o dedo indicador para reger seu próprio canto, pontuando cada floreio. Fora algum fã - geralmente chato e irracional -, até a Estátua da Liberdade sabe da superioridade de Whitney Houston dentro da música popular americana.Sinto-me à vontade para falar dela porque o temperamento da sua obra quase nada tem a ver comigo. Pura questão de gosto. Os baladões açucarados construídos com precisão de ourives, sempre mirando (e acertando) as paradas de sucesso raramente me emocionam. Parecem mais Wall Street e Madison Avenue do que o Apollo Theater. Contudo gosto muito de alguns singles, a maioria presente no seu álbum de estreia (Thinking About You e Saving All My Love For You, por exemplo). Whitney faz parte de um grupo de cantores que ouço pelo puro prazer físico causado por sua voz. Algo divino.A sua morte, embora chocante e entristecedora, é uma tragédia anunciada. Perdi a conta dos vexames, internações e casos de violência doméstica envolvendo seu nome. Ao contrário de outros artistas mergulhados nesse tipo de problema durante toda sua trajetória, Houston foi para América um modelo de comportamento e pureza durante quase todo seu reinado pop. Até hoje tenho dificuldade de ligar a 'american sweetheart' ao seu novo perfil. Na madrugada de sábado para domingo, ao dar uma entrevista ao vivo para uma rádio, me perguntaram: Por que artistas de música frequentemente morrem assim? Respondi de pronto que a adulação vivida por Picasso, Mies Van der Rohe ou T.S. Elliot não chega aos pés de qualquer teen idol musical. E tem o peso do mundo ser tratado como um mito, um rei, um semideus, um ícone - e não uma pessoa. No topo cabe pouca gente; falta verdade e sobram tristeza, dúvida e solidão. Uma parte dela era super-humana, captando e moldando o inconsciente coletivo, devolvendo-o sob a forma de uma obra artística reconhecida por centenas de milhões de pessoas. Outra parte é humana, com anseios, desejos e inseguranças. A tensão gerada entre os dois polos é destruidora. Com tanta beleza e talento, só uma coisa poderia arruiná-la: ela mesma.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.