Morte de Ianelli suspende projeto de documentário

O cineasta Carlos Cortez planejava rodar um documentário com o artista, morto na segunda-feira, com seu testemunho sobre diversos movimentos culturais

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

Ninguém ficou mais órfão com a morte de Thomaz Ianelli do que o cineasta Carlos Cortez. "Tudo o que aprendi sobre arte foi com o Thomaz. Perdi um grande amigo e um mestre", disse o diretor de Geraldo Filme e Seu Nenê, dois curtas sobre sambistas de São Paulo. O sentimento de orfandade de Cortez tem a ver com o projeto que ele desenvolvia com o próprio Ianelli e agora foi brutalmente interrompido com a morte do artista, na segunda-feira. "Há tempos vínhamos planejando a realização de um documentário. Não seria um documentário sobre a pintura do Thomaz, mas sobre os artistas que ele conheceu e os movimentos culturais que testemunhou ao longo de 48 anos de pintura." Um projeto desse tipo tinha de ser baseado rigorosamente no testemunho do seu protagonista. "O Thomaz tinha uma memória prodigiosa; era capaz de discorrer durante horas sobre artistas que a gente nem sabe que existem e ele sabia tudo: datas, obras, estilo." Desde que o pintor passou por uma cirurgia no coração, em 13 de setembro, Cortez costumava visitá-lo no Incor. Conversavam muito sobre o formato do filme. Cortez sabe que esse formato inicial ficou perdido, mas não desistiu de fazer um tributo ao amigo e ao artista. Em 1993, já havia feito o vídeo intitulado Thomaz. "Conheci o Thomaz nos anos 80. Na verdade, conheci primeiro a mulher dele. Foi ela quem me apresentou o Thomaz. A identificação entre a gente foi imediata e eu passei a acompanhar suas grandes exposições aqui em São Paulo e no Rio, no Paço Imperial." Cortez considera que foi um privilégio ter sido ciceroneado por Ianelli em quatro ou cinco Bienais de São Paulo. "Eu ia com ele, com aquela tremenda erudição que o caracterizava, parava diante de cada obra, dissertando sobre o autor e o significado daquilo, fosse pintura, escultura ou instalação; era um homem muito antenado com as novas correntes e tudo o que se passava no meio artístico." Cortez conversou com a reportagem antes de seguir para o velório do artista, no cemitério de Vila Mariana. Ainda estava zonzo, sem saber direito o próximo passo do seu projeto. Contou que Ianelli havia transformado seu quarto no Incor num ateliê e que sua paleta era a mesinha de refeições. Todas as paredes tinham aquarelas, era uma pequena exposição que Ianelli, com humor, chamava de Delírios de uma Internação Forçada. "Entre elas havia um auto-retrato do Thomaz na cama", conta Cortez. Ele acrescenta que Ianelli desmarcou exposições na Espanha e na Itália por conta da cirurgia. Estava em fase de recuperação, quando morreu de embolia pulmonar. Aos 69 anos, estava empolgado, organizando uma grande exposição para 2003, quando ia comemorar seus 50 anos de carreira. Ao longo de todo esse tempo, o artista forjou a reputação de ser um dos maiores pintores e aquarelistas do País. Exprimiu-se por meio de diversas técnicas, sempre revelando coerência e criatividade. Cortez revela um dos traços menos conhecidos da personalidade do artista. "Ele era muito desprendido das coisas materiais; tinha seu apartamento-ateliê em São Paulo, outro ateliê em Lisboa, mas não era daqueles que produzia para colocar à venda e faturar." Há centenas, isso mesmo, centenas de trabalhos de Ianelli que ele nunca expôs e guardava como uma espécie de reserva artística pessoal. Para Cortez, o documentário com Ianelli, que agora talvez venha a ser sobre Ianelli, era uma mudança significativa, senão de rumo, pelo menos de área de interesse. Em Geraldo Filme e Seu Nenê, dirigindo sua câmera para o sambista e para o fundador da Escolas de Samba Nenê de Vila Matilde, Cortez investigava não só o universo do samba em São Paulo, mas a cultura popular produzida pelos negros da cidade. Agora mesmo, ele inscreveu no concurso de roteiros de médias da Secretaria do Audiovisual - projetos com duração de 52 minutos -, o que poderá ser a terceira parte da sua trilogia sobre a cultura negra de São Paulo. O concurso da secretaria vai contemplar, com R$ 80 mil cada, a realização de três projetos especificamente sobre a cultura afro-brasileira. Cortez escolheu Solano Trindade. Artista plástico, teatrólogo, poeta, pesquisador e divulgador do folclore e da arte negra no Brasil, Solano Trindade contribuiu muito para que Embu adquirisse a projeção nacional que desfruta hoje, como cidade artística. Em 1976, foi homenageado com um samba-enredo (de Geraldo Filme) na Mocidade Alegre. A carnavalesca era sua filha, Raquel Trindade, a Kambinda - nome que designa uma região da África e uma preta velha na umbanda -, que agora assina o roteiro do filme que Carlos Cortez pretende dedicar a seu pai. O documentário sobre Ianelli não se inscreve nessa discussão sobre a cultura negra em São Paulo. "Mas é sobre a cultura de São Paulo e é isso que me interessa. Não só a cultura popular, mas a erudita, também. O Thomaz, como o Solano, foi um pesquisador e um criador. Era um grande homem e um grande artista; é preciso que as pessoas saibam disso."

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.