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Morte anunciada de Fernanda pára o País

Fernanda é só uma personagem de ficção, criada por Manoel Carlos em Mulheres Apaixonadas. Especialistas estimam que, no dia em que ela receber o tal tiro, a audiência baterá 70 pontos

Por Agencia Estado
Atualização:

Na quinta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva tentava resolver o nó górdio em que se transformou a reforma da Previdência. O foco estava nas negociações com o Congresso e temporariamente, pelo menos, as associações de juízes, promotores e procuradores estaduais, trabalhistas e militares dos Estados haviam decidido suspender a greve de terça-feira. O assunto poderia e talvez até devesse estar em todas as rodinhas de conversa, mas não. O Brasil inteiro passou a semana em suspense, à espera do tiro fatal que vai atirar Fernanda em coma profundo. A reforma da Previdência vai atingir o bolso de milhões de contribuintes. Fernanda é só uma personagem de ficção, criada por Manoel Carlos em Mulheres Apaixonadas. Especialistas estimam que, no dia em que Fernanda receber o tal tiro, a audiência da novela baterá em 70 pontos, um daqueles índices que nem a Globo consegue mais atingir. Manoel Carlos acertou na mosca. Ele sabe que País é este. Vamos aos fatos. Fernanda, interpretada por Vanessa Gerbelli, é mãe de Salete (Bruna Marquezine) e ex-affair de Téo (Tony Ramos). A garota anda tendo sonhos premonitórios de que a mãe vai morrer. Na lógica dos enredos de novelas, isso deve ocorrer para forçar Téo a assumir a guarda da criança. Seria uma solução catártica de folhetim televisivo, para liberar a emoção do público, se não tivesse se transformado num assunto de segurança nacional. Compare: os americanos esperaram durante meses até que o presidente George W. Bush lançasse o país em guerra contra o Iraque. Aqui, a expectativa é outra: Fernanda morre? E, se isso ocorrer, de que forma vai atingir o público brasileiro, que tem problemas concretos com que se ocupar? Desemprego? Esqueça. Ou melhor, a morte de Fernanda ficou subitamente associada à questão do desemprego que assola o País e um ministro desastrado - o do Trabalho - até veio a público para dizer que não é tão grave, pondo a culpa na imprensa. O prefeito do Rio está preocupado, a associação de hotéis também. Depois que a notícia da morte anunciada de Fernanda - Casseta & Planeta tem deitado e rolado sobre o assunto, chegando a colocar um alvo na cabeça da moça, para facilitar o trabalho do atirador - chegou ao Corriere Della Sera, na Itália, políticos e empresários estão preocupados com o impacto que isso poderá ter no turismo carioca. O Rio é uma cidade - maravilhosa - que tem no turismo uma de suas principais fontes de renda. Se a morte de Fernanda afastar os turistas das praias e dos morros (Corcovado, Pão de Açúcar), ninguém pode prever o que uma população que já vive de economia informal poderá fazer pela sobrevivência. Imagine o quadro: hotéis fechando ou, pelo menos às moscas, com todas as conseqüências daí decorrentes. É grave, mas - espere! - Fernanda é só uma figura de ficção e o público brasileiro e internacional tem condições de separar a fantasia da realidade. Por que toda essa importância atribuída à morte de uma figura fictícia? Esta semana, o traficante Marcinho VP foi assassinado no presídio de Bangu 3 e, no mesmo dia, um turista foi morto numa tentativa de assalto, no Rio. Nenhum dos dois fatos provocou essa comoção toda. Afinal, turista morrer em tentativa de assalto no Rio é coisa normal e não diminui o fluxo de estrangeiros que chegam ao País para divertir-se. Já Fernanda... Cariocas de associações de bairro e da indústria hoteleira chegaram a dizer que Fernanda deveria fazer uma viagem a São Paulo e morrer aqui, sabe-se lá de que maneira. Sugeriram envenenamento. São Paulo não tem bala perdida (ou tanta bala perdida), como o Rio, mas é uma selva de concreto e, portanto, não causaria espanto vê-la tropeçar num copo de curare, por exemplo. Essa preocupação excessiva com a ficção pode ser mais um pretexto para que se invoque o velho marechal Charles de Gaulle, ex-presidente da França, que disse um dia que o Brasil não é um País sério. Mas pode ser outra coisa. Pressionado por uma realidade asfixiante que não é só brasileira - o desemprego é um problema mundial, nesta época de globalização -, o público não agüenta ver o último oásis que ainda restava, a novela das 8, sendo invadido assim pelos enredos da vida. Manoel Carlos é um autor que gosta de enxertar a realidade em seu trabalho de ficcionista, mas em geral os telespectadores conseguem discernir melhor as coisas. Aqui, o meio-de-campo embolou. Estamos todos colados à TV. A agonia de Fernanda, que ainda não começou, já é a do povo brasileiro.

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