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Coluna semanal do antropólogo Roberto DaMatta com reflexões sobre o Brasil

Opinião|Morrer, dormir, talvez sonhar

O sono não é somente uma coisa dos justos. É, também, o que nos torna justos.

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Atualização:

Deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo... Hino Nacional Brasileiro Dormir bem é uma bênção e uma necessidade vital. Até povos dormem e os deitados em berços aristocráticos despertam assustados. Não conseguir dormir é um distúrbio para cujas causas usemos o chavão – podem ser físicas ou mentais. Na maioria, senão em todos os casos, acerta quem aponta, como as cartomantes, os cautelosos, os sábios e os ecléticos, múltiplas causas.

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O elo desconcertante entre sono, sonho e morte, entrelaçados pela dúvida consciente entre ser ou não ser, reitera no drama de Shakespeare, por meio de Hamlet, possibilidades morais que afetam pessoas e grupos. No Brasil, dormimos no imenso berço esplêndido de uma aristocracia sustentada pelo patriarcalismo escravocrata negro africano temperado pela mestiçagem, certamente mais forte do que as hierarquias oficiais.

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Conheci uma jovem cujo problema era o de não conseguir dormir. Todos sofriam ao vê-la buscando o sono como se ele fosse um estado impossível de ser por ela alcançado, enquanto todos os seus familiares e suas empregadas rotineira e “naturalmente” faziam força para resistir ao banal “sono dos justos” que os “pegava” liquidando suas vigílias num sono gostoso, o qual, apesar dos conselhos, remédios, rezas e apoio dos que a amavam, jamais chegava para ela.

Diferentemente do Brasil, que já se deitou em muitas camas, dormindo a sono solto, a nossa doente não conseguiu dormir nem mesmo em rede ou esteira. Soube que chegaram a tentar até mesmo um berço avantajado, mas nem assim a moça conseguiu “pegar” um sono regressivo numa cama infantil. 

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Quando concordaram que o caso não era de má digestão, ciclo menstrual ou mania, levaram-na a um psicanalista que desvendou a insônia.

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Casada e abraçada por uma moralidade tradicional, ela havia “traído” o marido com um sedutor chefe de departamento. O sexo nu e cru levou-a a um abismo de decepção. Moída por uma imensa culpa, ela não dormia, porque um desmesurado estado de vigília impedia que pudesse entregar-se a si mesma, nessa atitude banal que faz parte do dormir, do sonhar e do despertar. O “pecado mortal” lhe impedia de entrar no sono reparador que nos leva às profundezas do nosso escuro inconsciente. 

“Eu tenho medo de dormindo confessar o erro cometido”, disse ao seu terapeuta; e, como num filme antigo, a constatação levou nossa doente ao deleite do dormir, sonhar, morrer e... acordar. 

Meu velho amigo, Mario Batalha, revelou-me que, quando jovem, tinha pesadelos tão horrorosos que ficou com medo de dormir. 

De fato, o pesadelo inibe o sono e, pior que isso, leva a um despertar aterrorizante. A noite era infernal – comenta meu amigo –, porque minha consciência não desligava. Foi quando aprendi a importância do sono como uma experiência positiva da morte, um evento sem o qual não se vive, porque não há mais sonhos, terminou...

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Há os que, como o Brasil, dormem eternamente e os insones. Dormir, como apontam o bardo inglês, Schopenhauer, Freud e Thomas Mann, é uma experiência de morte, com a diferença que sabemos como nossa saúde depende desse equilíbrio entre a vigília (que não pode, como diz Thomas Mann, transformar-se em “zelo insensato”); e “o sono delicioso que rodeia nossa testa com a paz do lar e com braços envolventes nas sombras da noite”. A experiência da morte com (e não contra) a vida, do masculino com o feminino, da riqueza com a pobreza; o abandono da vigília da consciência em favor do seu oposto é a fonte de nossa criatividade e um elemento básico no nosso enriquecimento e bem-estar como revela o caso da moça insone. Aprender com o sono, com o sonho e com a culpa ou o pecado tem tudo a ver com a auto-honestidade – com a confiança integral em nós mesmos.

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O sono não é somente uma coisa dos justos, como diz a sabedoria popular. É, também, o que nos torna justos.

Opinião por Roberto DaMatta
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