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Morre Seamus Heaney, o poeta maior dos irlandeses

Nobel de Literatura de 1995 estava internado em hospital de Dublin; desde 2006, após um derrame, sua saúde piorou

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Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Ao ser notificado que a Academia Sueca tinha concedido a ele o Nobel de Literatura de 1995, no aeroporto de Dublin, chegando de férias da Grécia, o poeta Seamus Heaney, então o quarto irlandês da lista – os anteriores foram Yeats, Bernard Shaw e Beckett –, definiu-se como um “montinho de terra” diante dessas “gigantescas montanhas”. Não precisava. Seamus Heaney era um Everest da poesia, o mais importante poeta irlandês desde Yeats, segundo o colega americano Robert Lowell (1917-1977), que, além disso, era professor de criação literária, autor de obras confessionais como as de Heaney, que morreu ontem, aos 74 anos, num hospital de Dublin, em decorrência de doença não revelada pela família.

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Heaney foi um fenômeno literário. Não era um poeta hermético, embora seus temas fizessem alusão aos épicos gregos e à mitologia celta. Virou, inclusive, o poeta mais citado nos discursos de políticos como Bill Clinton. Conseguia, ao mesmo tempo, conquistar crítica e público, que o transformou em best seller na Inglaterra quando foi lançada sua transcriação do épico anglo-saxão Beowulf, em 1999. Como o rei do epílogo de Beowulf, ele merece todas as honras que recebeu do governo irlandês em sua passagem para a eternidade, pois, como o nobre herói, ele também lutou por uma causa: o reconhecimento da autonomia da Irlanda do Norte, tema fundamental entre os poemas que escreveu, reunidos em 13 livros publicados desde Death of a Naturalist (1966) por sua primeira e única editora, Faber and Faber.

Death of a Naturalist foi seu primeiro grande ciclo, encerrado com o volume Human Chain, publicado em 2010 e dedicado a discutir a inevitabilidade da morte. A imagem do último poema do ciclo é premonitória: “A porta estava aberta e escura estava a casa/ De onde quer que o chamasse, a resposta, já o sabia, seria o silêncio” (tradução livre). Heaney disse há dois anos que não escreveria mais nenhum livro depois dessa frase. Cumpriu a promessa.

Nenhum outro poeta irlandês conseguiu ser tão fiel ao descrever a natureza da Irlanda do Norte e a dor da perda de amigos e parentes nos sangrentos conflitos pela independência de um povo sob o tacão do colonialismo britânico. Um exemplo vigoroso é a descrição da dura vida do pai do poeta, Patrick, um iletrado camponês, retratado em meio a uma plantação de tomates no primeiro poema de Death of a Naturalist (Digging/Cavando). De uma numerosa família católica, oprimida pelos protestantes, Heaney conclui o poema reconhecendo não ter a força do pai agricultor, mas prometendo a si mesmo que usaria a caneta para cavar fundo o solo irlandês.

Não fez isso com raiva ou fúria irracional. Como disse ontem o ministro da Cultura da Irlanda, Jimmy Deenihan, Seamus “era um homem muito modesto, humilde e acessível, um grande embaixador da literatura irlandesa”. De fato, ele não recusava convites para palestras e parecia sempre disposto a discutir poesia, seja com acadêmicos ou jovens estudantes. No Brasil, seu interlocutor era o excelente tradutor José Antonio Arantes, responsável pela edição (bilíngue) de 150 poemas extraídos de nove de seus livros e reunidos em Seamus Heaney: Poemas (Companhia das Letras).

Mesmo que você não tenha lido nenhum poema de Seamus Heaney, ao menos ouviu um discurso de Bill Clinton em que, na esteira de Martin Luther King, o ex-presidente americano dizia ter um sonho: virá um dia em que “a esperança irá rimar com história”. Seamus Heaney fez essa rima numa das duas peças de teatro que escreveu (e inspirou Clinton), The Cure at Troy, aggiornamento de um texto de Sófocles que se passa na guerra de Troia (Filoctetes) para uma Irlanda do Norte onde o IRA mata centenas de policiais. Heaney não dá seu aval à violência. Antes, como em Norte (1975), seu ciclo de poemas mais conhecido, usa a ideia do Norte como seta orientadora para refletir sobre as invasões inglesas que marcaram a história de sua Irlanda, vista em fragmentos especulares que refletem as imagens de outras partes do mundo.

SEAMUS HEANEY: POEMASTradução: José Antonio ArantesEditora: Companhia das Letras (337 págs., R$ 54)

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