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Psiquiatria e sociedade

Opinião|Moral de retrovisor

Como insistir na exibição de uma obra condenada no tribunal da internet?

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Atualização:

Eu demorei muito tempo para conseguir assistir E o Vento Levou... inteiro. Numa época em que o acesso aos títulos não estava a um clique, minhas melhores chances eram nas reprises noturnas. Mas com suas quase quatro horas de duração o filme invadia a madrugada e, invariavelmente, eu caía no sono. 

Foi só com o avanço tecnológico que consegui dar conta do recado, só não lembro se foi em DVD ou VHS – sim, essas tecnologias já foram avançadas um dia.

Cena do filme '...E o Vento Levou', com Vivien Leigh e Hattie McDaniel Foto: MGM

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Embora não seja um cinéfilo profissional, eu sempre me interessei muito por cinema e ficava frustrado por não ter assistido uma obra que fazia parte da história do cinema, um dos grandes recordistas do Oscar, que já transcendera as telas para se integrar à cultura geral. Até o gibi da Turma da Mônica já havia lhe feito referência antes de eu ver o filme.

Agora novamente nos vemos em risco de vetar o acesso das pessoas a essa e a tantas outras obras por causa da explosiva conjunção entre redes sociais e moral retroativa.

A famigerada cultura do cancelamento, como ficaram conhecidos os movimentos maciços de críticas a pessoas, instituições ou obras cujas mensagens ou atitudes não se coadunam com a moral vigente, extrai sua força quase exclusivamente das redes sociais. Quando alguém diz algo racista, sexista, discriminatório, qualquer coisa que seja vista de forma negativa por um grupo, a reação nos sites de relacionamento é imediata. Dependendo do tamanho do grupo e do engajamento que ele propicia, surge uma reação em cadeia; esta se amplifica na caixa de ressonância dessas plataformas digitais e, a depender do tamanho de tal reação, extrapola a bolha onde surgiu, passando a ser tópico de conversa em diferentes grupos. 

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Se em todos os graus de repercussão a reputação do protagonista é abalada, é nesse último nível que mora o terror de quem vive de sua imagem. O temor é ver usuários deixando de seguir os perfis, assinantes cancelando as inscrições, consumidores mudando as escolhas. Para evitar essa debandada, o roteiro varia pouco: pedido de desculpas, retratação, alguma atitude compensatória e por aí vai.

É nesse pacote que entram as suspensões de obras, demissão de atores, cancelamento de contratos, revisão de trechos de livros. Tudo para dar uma satisfação e apaziguar sobretudo os exibidos morais, motores desse tipo de situação.

O exibicionismo moral (moral grandstanding) pode ser definido como o uso de declarações éticas como forma de autopromoção. O exibido moral fala sobre suas posturas com intuito de demonstrar superioridade com relação aos que dele discordam. A ideia é fazer com que se sintam mal todos aqueles que não compartilham dos mesmos pontos de vista. Presente tanto à esquerda como à direita, são essas pessoas as mais barulhentas no mundo virtual.

Agora some-se a isso a moral retrospectiva, na qual se julgam a correção das posturas e atitudes passadas a partir de parâmetros atuais e nos encaminhamos para um novo obscurantismo, no qual obras que refletem o espírito de uma época são proibidas como se fossem peças de propaganda de algum ideal condenável. Embora se queira progressista e esclarecida, essa ética de retrovisor é filha do anti-intelectualismo, pois só a ignorância é capaz de explicar a incapacidade de uma leitura contextualizada conforme a época de produção de uma obra.

Trata-se de um dilema para as empresas de conteúdo. Insistir na exibição de um filme ou na venda de uma obra condenada no tribunal da internet é arriscar ficar sob ataques cujo impacto não se pode conhecer de antemão. Suspendê-la é apequenar não apenas o próprio portfólio como o próprio acervo cultural disponível para a sociedade.

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Por isso que me pareceu inteligente a saída encontrada pela HBO para manter E o Vento Levou... em seu catálogo. Em vez de banir a obra ou editá-la, o canal apresenta junto com ela vídeos que explicam seu contexto histórico e debatem seu legado. Superficialmente serve de satisfação tanto para os exibidos como para quem não quer ou não consegue pensar além. Mas ao mesmo tempo é uma bela oportunidade para quem quer conhecer de fato a obra e pensá-la de forma mais ampla. 

* É PSIQUIATRA

Opinião por Daniel Martins de Barros

Professor colaborador do Dep. de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP. Autor do livro 'Rir é Preciso'

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