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Montagem atualiza surrealismo de Qorpo Santo

Por Agencia Estado
Atualização:

A partir de amanhã, o público paulistano vai poder ver, no Centro Cultural São Paulo, um dos melhores espetáculos apresentados na mostra paralela do Festival de Teatro de Curitiba, em março. Dirigido por Georgette Fadel, com um elenco de cinco atores, Um Credor da Fazenda Nacional reunindo três peças do gaúcho Qorpo Santo (1829-1883), é uma atualização talentosa da dramaturgia surreal do autor. O eixo central da montagem é em torno da peregrinação pelos corredores de uma repartição pública realizada pelo protagonista da peça que dá título ao espetáculo, o credor interpretado por Patrícia Gifford. À semelhança de Joseph K., personagem de O Processso, de Kafka - perseguido pela Justiça sob uma acusação jamais revelada -, o credor de Qorpo Santo sente-se perdido nos meandros de uma burocracia indecifrável. De posse de um requerimento, ele enfrenta uma maratona diária, meses a fio, de sala em sala, de funcionário indiferente a chefete arrogante, na tentativa de receber um dinheiro que, garante o requerimento, ele tem direito. Porém, o requerimento é letra fria, um papel inútil nas mãos do credor a cada dia mais perdido entre funcionários inacessíveis, perambulando por uma repartição pública surrealista. Numa das cenas, por exemplo, vê-se envolvido numa enlouquecida ciranda de carimbos e processos quando subitamente toca a sineta do "momento cívico". Todos os funcionários param o que estão fazendo e, gestos congelados, ouvem o hino "como é bom ser brasileiro", seguido do "momento de relaxamento". Mas os burocratas não são só os vilões da história. Também têm motivos para sentirem-se perdidos. Depois do "relaxamento", o sistema de som interno anuncia o "pronunciamento do presidente". Com a devida solenidade, a voz em off anuncia que o salário do funcionalismo público vai ser provisoriamente... Os fortes chiados provocados por uma interferência qualquer não permitem ouvir o resto, mas os funcionários adivinham - ou deduzem - o pior. Em sua concepção, Georgette conseguiu levar ao palco com rara fidelidade o clima surrealista característico da dramaturgia de Qorpo Santo sem abrir mão de uma leitura atualizada do texto e da crítica social. "Todo brasileiro é um pouco credor da Fazenda; todo mundo sabe o que é enfrentar uma fila imensa, ser mal atendido numa repartição ou, pior, esperar por socorro num hospital público, onde não se é tratado como um ser humano", observa a atriz Cátia Pires. Cátia interpreta - com ajuda de um figurino muito especial - a gordíssima mãe do credor numa cena extraída de outra peça de Qorpo Santo, Dous Irmãos. Cenas de O Marido Extremoso ou o Pai Cuidadoso, também do autor, abrem e encerram o espetáculo, que tem início no corredor de acesso à sala 4 do CCSP, onde o público vai passar, acompanhando o personagem, por diferentes "setores da repartição". A dramaturgia de Qorpo Santo ou José Joaquim de Campos Leão, seu verdadeiro nome, foi descoberta quase cem anos após sua morte, pelo professor mineiro Guilhermino César. Nascido na cidade de Vila do Triunfo, casado, pai de seis filhos, professor Qorpo Santo passou a ser "acusado" de doente mental em 1860, algo que sempre contestou com veemência. Em 1864, viajou para o Rio onde ficou internado na Casa de Saúde Doutor Eiras até 1868, quando os psiquiatras avaliaram que a internação piorava o estado do paciente. Em 1870, abriu uma gráfica para editar Seis Meses de Huma Enfermidade, uma espécie de enciclopédia muito particular em vários volumes, nos quais reuniu poesias, artigos e suas 17 peças, todas escritas durante a internação em 1866. Entre outras coisas, Qorpo Santo defendia uma reforma ortográfica que eliminasse letras inúteis, como o "u" depois do "q", regra que adotou na grafia de seu nome artístico. Qorpo Santo foi considerado por muitos precursor do teatro do absurdo, filiação artística contestada por Eudinyr Fraga no livro Qorpo-Santo: Surrealismo ou Absurdo?, editado pela Perspectiva. As situações desconexas de suas peças o distanciam, segundo Fraga, da criação racional de, por exemplo, Ionesco. Qorpo Santo estaria mais próximo dos surrealistas, que mergulham no inconsciente para criar suas obras oníricas. Um Credor da Fazenda Nacional - Comédia. De Qorpo Santo. Direção Georgette Fadel. Duração: 75 minutos. Sexta e sábado, às 19h30 e 21h30; domingo, às 18h30 e 20h30. R$ 10,00. Centro Cultural São Paulo - Sala de Ensaio 4. Rua Vergueiro, 1.000, tel. 3277-3611. Até 16/7.

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