Moderna fábrica de monstros

SÃO PAULO - Jean Clair, curador e historiador da arte, lança o livro Hubris: La Fabrique du Monstre dans l’Art Moderne (Gallimard, 2012). A pesquisa que sustenta o ensaio não traz grande novidade. Já na Pauliceia Desvairada (1922), Mário de Andrade teorizava sobre a "atração exercida, em todos os tempos, pelo feio sobre os artistas". A pesquisa de Clair ganha o leitor pela envergadura da empreitada.

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Por Redação
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Se feito com palavras tomadas ao autor, o resumo de Hubris não chega a constranger. São três os monstros evocados e descritos no livro: o homúnculo, o gigante e o acéfalo. Encontradas em todos os períodos da arte, essas criaturas monstruosas renasceram e se impuseram nos tempos modernos. Multiplicaram-se entre 1880 e 1914 e levaram de vencida as aparências de uma arte que desde sempre almejou o cânone das belas proporções, tal como estabelecido pela imagem divina. É a arrogância do artista, a desmedida (hubris), que passa a explicar a norma: as três criaturas monstruosas são determinantes na orientação geral da arte moderna.

 

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A escrita do ensaio é a novidade de Hubris e, por ela, recomendo-o. O leitor estará frente a um discurso historiográfico sobre a arte na era Google, quando há que saber domar a erudição excessiva e anárquica. Esse discurso se concretiza no modo como Jean Clair organiza o ensaio tripartido e como, no interior da organização, escreve cada capítulo, ou seja, trabalha o material pertinente e o transmite ao leitor. Em Hubris, a qualidade do discurso crítico é, pois, fundamental. É a letra que deriva das exposições por ele idealizadas e montadas nos melhores museus do mundo.

 

Daremos apenas dois exemplos de como ele trabalha a escrita. Ela parte de um caroço residual que funciona como "referência", no sentido que lhe é dado por Lévi-Strauss na análise dos mitos indígenas. Para o caroço convergirão as obras a serem analisadas e é a partir dele que o discurso crítico se faz leitura delas e dissemina a semântica da história da arte, excessiva e anárquica nos dias de hoje. Centrada na referência, a leitura vai-se descentrando por deslocamentos.

 

O primeiro caroço é inevitável em discurso historiográfico. Tem a ver com a cronografia. O ano de 1895 assinala um recomeço na história universal do monstro. Para a data converge e dela se propaga a semântica do moderno que hoje põe por terra a moda do body-building e do silicone. Naquele ano são descobertas invenções técnicas (o cinema, os raios X e a radiofonia) e divulgadas teorias científicas revolucionárias (a psicanálise). Graças a elas, a iconografia dos fantasmas e do invisível ganha o proscênio da arte futura.

 

Edward Munch representa o próprio braço como tendo passado pelos raios X e Duchamp, o maxilar como se tomado a livro de anatomia. A representação médica de pacientes histéricos (Charcot, na Salpêtrière) ou epilépticos (Wilder Penfield, em Montreal) recebe o interesse devotado aos monstros saídos dos bestiários medievais. A beleza, no dizer de André Breton, namora a convulsão, e esta se transforma em variável a evocar tanto a clínica de Charcot quanto as esculturas de Louise Bourgeois. As obras plásticas expõem deformações, elastizações, omissões ou hipertrofias. Prefiguram o homúnculo (Joan Miró), o gigante (Goya, onde, segundo André Malraux, começa o moderno) e o acéfalo (Georges Bataille/André Masson).

 

O Titã serve a Clair para retomar a crítica aos regimes totalitários dos anos 1930. Nos cartazes de propaganda do fascismo e do nazismo, representa-se o descomunal homem do futuro. De Klinger a Grosz, de Kubin a Sironi reconhecem-se as figurações ditatoriais e cruéis de Mussolini, Stalin, Hitler... Da digressão política pula-se para a leitura da tela Le Passage du Commerce Saint-André, de Balthus (1952-54).

 

A obra-prima de Balthus é também exemplo de caroço. Óbvios ou ocultos, os detalhes da composição são esmiuçados com cuidado e ciência por Clair e cada elemento passa a navegar nas águas da Revolução Francesa (1789-1799). Como se diante de desenho de Onde Está Wally, Clair sai à procura da guilhotina e do cravo (instrumento musical) criptografados na representação do cotidiano parisiense.

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A Travessa do Comércio fica no Odéon, em Paris, e desemboca na Rua Saint-André-des-Arts. Não longe está o ateliê do pintor que, ao centro da tela, de costas, volta à casa carregando um pão - baguete. Ao seu lado, um cachorro branco e de pelo cacheado, espécie de cordeiro pascal. No chão que o animal pisa, levantou-se para o primeiro teste, no dia 15 de abril de 1792, a guilhotina. Ao fundo da tela, no número 8 (em dourado, com destaque), havia uma tipografia, onde Marat, a partir de 1791, passou a imprimir o jornal L’Ami du Peuple. Danton morava em casa vizinha. No imóvel em frente, de número 9, se encontrava a oficina onde o artesão Tobias Schmidt trabalhava a madeira e fabricava cravos.

 

Não foi o doutor Guillotin e, sim, Tobias o verdadeiro criador e artífice da máquina de matar. Era amigo de Charles-Henri Sanson, o carrasco de Paris. Em autobiografia, o neto de Sanson lembra que Schmidt, ao ouvir com o amigo uma ária de Orfeu e um duo de Ifigênia em Áulis, tomou de um lápis e rabiscou o que seria a guilhotina. Sanson mostra o desenho ao doutor Gulhotin que, por sua vez, fá-lo chegar às mãos do cirurgião Antoine Louis, que o avalia. Alguns historiadores afirmam que Luís XVI participa da finalização da máquina de decapitar.

 

À virtude republicana se opõe o vício aristocrático. O avesso da guilhotina está na lentidão do flagelo que retarda a "pequena morte". Na pena do Marquês de Sade, a lentidão do suplício mantinha estranha relação com o furor erótico. No crescendo da dor, diferir a morte retarda e aviva a delícia do gozo. Pela guilhotina e o prazer, Hubris se abre para o terceiro e último monstro - o acéfalo.

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