Mitsuko Uchida em disco, antes da viagem ao Brasil

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

"Sol, afaste-se daqui, siga teu declínio!/ Deixe que só o meu calor chegue até minha amada./ Só eu posso cantar e florescer para ela." É mais ou menos isso que dizem os versos de Justinus Kerner no poema No Outono, musicado por Schumann. A canção tem menos de 2 minutos de duração e é cantada pela soprano Dorothea Röschman, acompanhada por Mitsuko Uchida em seu terceiro CD dedicado a obras do compositor. Por que o bônus? Simples. Seu tema foi usado por Schumann no comovente Andantino da segunda sonata para piano,que Uchida toca com uma intensidade contida, diferenciada. Este é apenas um dos motivos que fazem deste CD acontecimento excepcional. Tanto quanto a esperadíssima estreia brasileira da pianista, marcada para acontecer em maio, quando ela solará o concerto nº 4 de Beethoven, ao lado da Sinfônica da Rádio Bávara e Mariss Jansons. Aos 64 anos, Mitsuko Uchida é uma das estrelas mais brilhantes - e recatadas - do piano clássico. Refinada, grava o que quer, com quem quer e como quer. Tomara que a Sociedade de Cultura Artística a convença a também fazer um recital. Seria um justificadíssimo sonho de consumo de todos que adoram o piano clássico. Por enquanto, podemos curtir o CD. É um encantamento. Não há outra palavra para qualificar o toque sutil e intenso de Mitsuko Uchida. A peça central é a originalíssima segunda sonata para piano em sol menor. "Amo esta sonata como te amo", escreveu-lhe sua amada Clara Schumann em 1835. "Ela me lembra muitas horas, algumas belas, outras dolorosas, mas o final é complicado demais." Três anos depois, ele substituiu o Presto final vertiginoso por um outro, que qualificou como "mais simples". Manteve, porém, o delirante Vivacissimo. Uchida mergulha de cabeça neste delírio; abre sua veia lírica particularíssima no Andantino; retoma o toque frenético no Scherzo "muito rápido e marcado"; e conclui num rondo de novo vertiginoso, com a indicação "Presto - prestíssimo, quasi cadenza". Em resumo, uma leitura cheia de fogo e fúria.Os cinco Cantos da Aurora, opus 133, são do final de 1853, dois meses antes de, no início de 1854, Robert atirar-se no rio Reno e em seguida ser internado em Endernich, onde ficou até a morte em 1856. Clara e Brahms destruíram, por exemplo, romances para cello e piano e esconderam o concerto para violino, por considerá-las obras de uma mente já prejudicada. São peças enigmáticas, crepusculares, estranhas. Clara referiu-se ao clima "estranho" delas. Mas o próprio Robert as explicou: "peças que descrevem a chegada da manhã, mas como expressão de sentimentos e não como pinturas sonoras". E o toque contido de Uchida demonstra que ela compreende o pleno sentido destas peças-testamento do compositor. / J.M.C.

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