Mitos do deserto

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Por Mario Vargas Llosa
Atualização:

Há várias semanas, tomo meu café da manhã em Nova York contemplando seis gravuras de Szyszlo. Não sei de que época são, mas não tem a menor importância.

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Do mesmo modo que suas pinturas, as seis gravuras são atuais, modernas e antiquíssimas. Esses adjetivos não são contraditórios em se tratando de Szyszlo, mas complementares, pois um dos aspectos mais atraentes da sua obra é que ele transcende o tempo e o espaço, fundindo em suas imagens o passado e o presente, assim como o “aqui” da sua terra natal, o Peru, com o “” que abrange uma vasta geografia onde América Latina faz fronteira comum com Estados Unidos, Europa e grande parte do resto do mundo. Desta mescla nasce a unidade da sua arte, que é atual, repleta de lembranças do passado e de múltiplas alianças às quais, acrescentando o seu impetuoso talento criativo, ele infundiu uma personalidade original.

No fundo destas gravuras, se adivinham as grandes dunas da costa peruana, uma paisagem à qual ele se referiu muitas vezes com emoção e que inspirou boa parte da sua obra. Nelas, surge esse interminável deserto, despovoado de homens, mas não dos artefatos fabricados por seres humanos, e habitado pelas criaturas e monstros criados por seus medos e suas esperanças. É conhecida a fascinação que ele tinha pelas culturas pré-hispânicas litorâneas, os tecidos e mantos de plumas, as cerâmicas e as delicadas figuras com que as culturas nazca e paracas caracterizavam pelicanos, cormorões, gaivotas, seus deuses e demônios. Tudo isso está presente nessas seis gravuras e a sua sutil alternância de cores negras, cinzas, brancas e amarelas que essas curiosas figuras parecem resgatar de algumas sepulturas enterradas na areia para trazê-las à plena luz.

Se tivesse de ficar com uma apenas dessas gravuras escolheria sem vacilar a primeira, esta serpente voadora (para dar um nome) da qual vemos somente a terrível cabeça e o traço veloz do seu voo já no ar, uma estrela astral, um raio ou um relâmpago tão vertiginoso que seu corpo desaparece, deixando somente um rastro luminoso. A cabeça é uma mescla na qual coincidem todos os habituais ingredientes dos totens e altares que há muito tempo frequentam os quadros de Szyszlo, desde que sua pintura deixou de ser não figurativa e ele optou por um realismo mítico ou onírico: chifres, fendas, olhos, cilindros. Elementos que evocam velhos mitos, religiões extintas dos antigos peruanos, mas também alucinações, súcubos e íncubos com que os surrealistas procuraram capturar os sonhos, ressuscitar a magia e as bruxarias primitivas e instalá-las no mundo moderno. Essa serpente prodigiosa sobrevoa um muro feito por mãos humanas em que, como um enigma que espera ser decifrado, há uma cavidade com uma lua de metal ou uma pedra preciosa incandescente.

A segunda gravura é também um mistério, um espaço vazio invadido por símbolos, retângulos escuros como pistas para extraterrestres ou fantasmas, e um totem negro, uma efígie muda e pétrea do passado longínquo que, entretanto, está viva a julgar por esse pequeno raio de luz que emana da sua massa inerte. É como se fosse um grito de desespero daqueles seres vivos (crianças, principalmente) que, segundo as antigas crenças andinas, eram tragados pelas pedras e as montanhas que os mantinham cativos no seu seio de granito.

Na terceira gravura, as monstruosas serpentes são duas e, além de voarem, diria que entram em luta ou estão prestes a isso, diante das formas agressivas, beligerantes, como que se cruzam e descruzam a velocidades impossíveis, silenciosas e ferozes, soltando faíscas como duas espadas de ferro que se chocam.

Nas outras três gravuras, sempre tendo ao fundo esse deserto cinzento semioculto por uma delicada neblina, aparece esse altar de sacrifícios, ou um mítico leito nupcial que há muitos anos é o grande protagonista das telas, murais e esculturas de Szyszlo. Enigmática e complexa figura que, às vezes, parece expressar o inconsciente de um povo que busca o sentido da vida, aquilo que está mais além, que está fora da sua compreensão, mas que ele intui que existe e que seria uma incursão nos labirintos do amor, seus mistérios, o gozo e as convulsões do erotismo que Sade escreveu que só alcançava sua plenitude quando se aproximava da morte. É uma ideia que, de algum modo, envolve essas construções que reaparecem no mundo de Szyszlo.

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Nessas figuras há sempre uma violência oculta, uma confusão irracional e, ao mesmo tempo, uma vitalidade extraordinária, como se todos esses nus, conexões, raios de luz, sementes, picos, círculos, estivessem repletos de animação, de febre, e respiram.

Fernando de Szyszlo comemorou 90 anos há alguns meses e está tão vivo quanto as imagens dessas seis gravuras que acompanham minhas manhãs nova-iorquinas. Sem pausa e sem pressa, continua enriquecendo o mundo fascinante que vem construindo desde que, na sua distante juventude, abandonou a arquitetura para se dedicar à pintura. Aderiu primeiro ao cubismo e, logo depois, à pintura não figurativa que, no decorrer dos anos, evoluiria para uma realidade mágica, mítica, de grande sutileza e elegância em que, além da destreza e bom gosto, percebemos a presença de uma outra paixão que ele nutre, a boa literatura.

Quando jovem esteve na Europa e aproveitou ao máximo a melhor pintura clássica e moderna do Ocidente. E, sem dúvida, se tivesse se estabelecido ali, ou nos Estados Unidos, teria sido reconhecido muito antes como o grande criador de mitos e de imagens que ele é.

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Mas preferiu retornar ao seu país e fazer ali o que na época parecia uma quimera: viver para pintar e tentar sobreviver sem jamais fazer concessões, tanto no campo artístico, como político e cultura. Conseguiu e, por isso, além de ser valorizado e admirado como criador, há muitos anos exerce um magistério cívico, o que não é muito frequente na América Latina no caso de um artista plástico. Nunca parou para desfrutar apenas do sucesso. Continua pintando com o rigor e a ilusão dos seus anos de juventude, sem se deixar vencer jamais pelo pessimismo ou desilusão, batalhando sem trégua em busca da impossível perfeição estética e para que seu país seja tão livre, tão moderno e universal como o universo que criou com a pintura.

Essas seis gravuras que contemplo toda manhã me fazem lembrar seu belo estúdio, as batalhas que compartilhamos ao longo dos anos, os amigos que partiram e nossa perene amizade. Tudo isso de algum modo também está presente na atmosfera cálida, impregnada de nostalgia, destas imagens que toda manhã desafiam com sua luminosidade o frio e a névoa deste início de inverno nova-iorquino. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO

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