Mistério sobre amigos e personagens fascina Auster

O autor de , que ganha agora nova edição brasileira, pela Companhia das Letras, diz que não conseguiria escrever se soubesse, de antemão, tudo sobre suas criações

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Por Agencia Estado
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É Paul Auster quem abre a porta de sua casa de três andares - e um sótão onde funciona seu escritório - no bairro residencial do Brooklyn. O ator recebe a reportagem do Agência Estado para falar sobre o relançamento brasileiro de Leviatã (Companhia das Letras, 320 páginas R$ 29,50), que acaba de ganhar uma nova tradução pela Companhia das Letras. Sétimo livro de sua carreira e lançado originalmente em 1992, Leviatã conta a história de dois amigos: Peter Aaron e Benjamin Sachs. Após a trágica morte de Sachs (vítima de uma bomba caseira que detonou antes do tempo), Aaron, um escritor, começa a investigar a causa do episódio. Auster define seu livro como uma história de amizade e dedicou o tomo a Dom Delillo, escritor de quem é amigo há quase 15 anos. Durante a conversa de quase duas horas, interrompida por alguns telefonemas, Auster atendeu a porta duas vezes: uma para sua mulher, a escritora, Siri Hustvedt, e o cachorro encharcado pela chuva/neve que caiu na cidade na tarde de quinta-feira; e a outra para um entregador de supermercado. Em sua sala de três ambientes, livros de mesa com fotos de Vermeer e Rembrandt e dois quadros com a figura de uma máquina de escrever. Extremamente simpático e falante, Auster disse estar pessimista quanto ao futuro dos EUA durante a gestão George W. Bush e revelou que não tem planos de dirigir um novo filme. Seu próximo livro, que ele escreve no momento (algo em torno de cinco, seis páginas por dia), deve sair no final do ano. Auster disse ter ficado fascinado pelos livros de Machado de Assis e revelou que o cineasta Héctor Babenco quase adaptou uma de suas obras. Confira a entrevista. Agência Estado - Peter Aaron, o escritor que narra a história de Leviatã, tem as suas iniciais. Além disso, Benjamin Sachs, o amigo cuja vida Peter investiga, era um pseudônimo que o senhor usava. Por quê resolveu fazer uma autocitação e até que ponto o personagem de Peter seria autobiográfico? Paul Auster -Peter é muito pouco autobiográfico. Um dos desafios de escrever Leviatã foi o de não tornar o personagem um espelho. Por exemplo, Peter está sentando em Vermont, escrevendo numa mesa verde. Eu já escrevi numa mesa verde em Vermont. Na verdade, estava tentando inscrever situações físicas minhas dentro da trama. Foi uma situação delirante estar ao mesmo tempo dentro e fora da minha história. Outro exemplo, Peter casa-se com uma mulher chamada Iris. E Iris é o nome de minha esposa pronunciado de trás para frente. Mas, no final, Peter não tem nada a ver comigo. Espero ser um pouco mais inteligente do que ele. Peter é um pouco devagar. Ele é muito sério e sincero. Perde muito tempo tentando entender as coisas, porque sempre está um passo atrás. Ao investigar Benjamin, Peter se surpreende pelos fatos que desconhecia da vida do amigo. Ao sentar para escrever, o senhor se surpreende também com o rumo tomado por seus personagens? O tempo todo. Eu não saberia o propósito de escrever um livro, se pré-conhecesse inteiramente meus personagens. O ato de escrever para mim é o fato de projetar-me dentro de uma situação ou de um personagem e deixar isso evolver-me até eles saírem para a vida. A aventura para um escritor é deixar surgirem fatos de que ele não suspeitava. Não se trata de uma matemática. É uma caixinha de surpresas que, às vezes, se resulta em mágica e em outras situações, em pesadelo. O senhor dedica Leviatã ao escritor Don DeLillo. Por quê? Duas razões. Leviatã é um livro sobre amizade. Mais especificamente sobre os mistérios da amizade. Há pessoas em nossas vidas que assumem lugar muito importante. Sem esses amigos, nossa vida seria vazia. Por outro lado, quanto mais conhecemos nossos amigos mais descobrimos coisas novas sobre eles. O fato de que sabemos tão pouco sobre as pessoas próximas da gente é fascinante para mim. Dom é um grande amigo e eu queria homenagear essa amizade. Na mesma época em que trabalhava em Leviatã, Don escrevia Mao II, um livro também sobre um escritor. Pareceu-me um fato extraordinário que estávamos pensado sobre as mesmas coisas, ao mesmo tempo, e de maneiras completamente opostas. O senhor finalizou Leviatã no final da gestão de George Bush. Agora termina seu próximo livro no começo da gestão do filho deste, George W. Bush. Como o senhor vê a entrada dos republicanos do poder, depois de dois mandatos dos democratas com Bill Clinton? É como um pesadelo, não? Você acorda e tem pessoas horríveis no poder outra vez. Fiquei muito deprimido por causa dessa eleição. Pareceu-me uma das maiores fraudes na história da América. Eu acho que essa eleição foi roubada pelos republicanos. O mais interessante disso tudo é que pouca gente me pareceu alarmada. Estou muito frustrado. Não tenho fé nessas pessoas, como tive em Bill Clinton. O senhor então está pessimista? E todo mundo não está? Pareceu-me que a Suprema Corte tomou um decisão muito ultrajante. Algo que não tem base em argumentos legais; algo totalmente político. E eles, infelizmente, tiveram a última palavra. Um amigo francês me ligou outro dia e disse: "agora você deve saber o que é viver numa ditadura" (risos). Mas é mesmo. A verdade não aparece, ela é suprimida pelas autoridades e não há nada que a gente possa fazer a respeito. O senhor pode comentar o tema de seu próximo livro? Eu não costumo comentar meus livros em processo de criação, mas adianto que é uma novela. Mas tenho uma coisa muito interessante que estou lançado em setembro. Pouco mais de um ano e meio atrás, eu estava na rádio NPR promovendo meu último livro. E eles me chamaram para fazer parte do programa. Disseram que gostariam que eu contasse histórias. Confesso que não gostei muito da idéia. Quando voltei para casa e contei essa coisa estranha para Siri, ela se entusiasmou e surgiu com uma outra idéia. "E se você não escrevesse, mas sim pedisse que as pessoas mandassem suas verdadeiras histórias e você as lesse no rádio?" Fiquei fascinado (risos) e criamos o National Historic Project, lugar para onde as pessoas de todos os cantos da América mandam histórias sobre suas vidas, de duas a quatro páginas. Esses contos vão do hilário ao trágico; do maluco ao triste. Estou fazendo isso na rádio há algum tempo e agora resolvi reunir 180 dessas histórias numa antologia. O resultado ficou surpreendente, estou muito animado. O livro vai se chamar I Thought My Dad Was God (Eu pensei que meu pai fosse Deus), frase tirada de um dos contos. Quando o senhor escreve um livro, como faz agora, existe algum plano disciplinar que segue para avançar no trabalho? Não chamo de disciplina, pois é o que eu gosto e o que me proponho a fazer. Acordo todos os dias às sete da manhã. Despacho minha filha para a escola. Leios os jornais, tomo algumas xícaras de café e desço para meu escritório. Depois de algum tempo, faço um intervalo. Se o clima está bom, faço uma caminhada pela vizinhança. Almoço e inicio minha tarde. Meio enfadonho, não? Mas escrever é uma atividade enfadonha. Todas as vezes que sou obrigado a me afastar um pouco do que faço, fica difícil voltar e pegar de novo. Demora alguns dias para voltar ao tom normal. Por isso é que só gosto de ter os domingos livres. Lulu on the Bridge (O Mistério de Lulu), rodado em 1998, foi seu último filme. O senhor não sente um comichão para voltar a dirigir? Te digo uma coisa: depois que terminei de rodar Lulu on the Bridge, precisei de um longo tempo para tirar o filme fora de mim. Sentia falta de conversar com outras pessoas, pensar e tomar decisões no meio de situações problemáticas. Mas agora, de volta ao meu quieto cotidiano, é difícil. Quase fiz um novo filme há um ano e meio. A TV alemã queria financiar um projeto de 30 minutos. Escrevi o roteiro, estava tudo pronto, mas tinham itens no contrato que não pareciam seguros para algumas pessoas de minha equipe e não quis colocar ninguém em perigo financeiro. Lulu on the Bridge foi lançado em vários países, inclusive no Brasil. Mas ele não chegou ao mercado comercial americano. Por quê? O showbiz é um mundo complicado (risos). Peter Newman, o produtor também de Cortina de Fumaça e Blue the Face (Sem Fôlego), lidou com os caras que colocaram o dinheiro na produção, um grupo inglês. Mas eles tinham expectativa muito curiosa para o filme e ficaram recusando ofertas de distribuidores americanos, sempre achando que não era dinheiro suficiente. As ofertas pareceram boas para nós, mas eles não queriam assinar contrato. Fomos para Cannes, sem um distribuidor. Por isso, tínhamos que fazer bonito no Festival. Mas fomos massacrados pela imprensa. Eles nos mataram. Cannes é uma casa de doidos e o que é escrito pela imprensa pode ser cruel. Estava lá no mesmo ano em que Terry Gilliam apresentava Fear and Loathing in Las Vegas (Medo e Delírio em Las Vegas), filme não muito bem aceito também. Lembro que fomos jantar juntos e ele me disse: "Paul, eu me sinto como São Sebastião." (risos) Mas te conto uma história interessante. Segundo meu produtor, o distribuidor brasileiro de Lulu viu o filme em Cannes e foi no escritório dessa companhia inglesa. Lá, ele encontrou o pessoal azedo, com sabor de derrota, mas disse que queria comprar os direitos. E o pessoal respondeu: "Mas ninguém quer comprar nada, esse filme é um fracasso." E o distribuidor brasileiro disse que não se importava, porque tinha amado o filme e queria mostrar no Brasil. Não conheço esse distribuidor, mas tenho enorme simpatia por ele. (risos) O que o senhor consegue do cinema, que a literatura não lhe proporciona? Você fala com outras pessoas. (risos) A grande coisa pra mim de fazer filme é ter de ficar todo tempo na ponta de seu pé. Com escritor isso não acontece. Se você não tem certeza de uma frase, e só apagá-la. Num set de filmagens, você tem que pensar na frente de 60 outras pessoas. Você tem que tomar decisões sempre certas e cristalinas. O desafio, entretanto, é muito revigorante. Gosto de ter que tomar conta de outras pessoas, manter os ânimos, ser paciente e não perder o humor. Do ponto de vista humano, é uma grande experiência. Não vejo o ato de filmar como uma arte, mas sim como situação humana. Existem rumores de que Leviatã, Mr. Vertigo e The Locked Room vão ser filmados. Eu nunca negociei Leviatã, até porque acho um livro difícil de ser adaptado em duas horas. Vendi os direitos de The Locked Room e Mr. Vertigo por razões específicas, e pelas quais lamento muito agora. Sei que The Locked Room vai ser filmado por esse cineasta chamado Alexander Payne (de Ruth em Questão e Eleição), mas parece que ele embarcou em outro projeto na frente. Estou no escuro, uma vez que as pessoas que detêm os direitos não me mantêm informado. Héctor um dia me ligou dizendo que gostava de meus livros. Ele disse que se sentia atraído particularmente por Palácio da Lua, e queria saber se havia alguma maneira de ele fazer um filme deste livro. Mas, como já te disse, projetos no cinema morrem num piscar de olhos. Nos tornamos muito amigos. Ele é um ótimo cara. E o projeto Center of the Word, que o cineasta Wayne Wang, seu parceiro na direção em Cortina de Fogo e Blue in the Face, finaliza no momento? Que participação tem nele? Não quero falar muito sobre isso. Siri e eu ajudamos um pouco. Mas trata-se de um filme dele, não nosso. Dessa vez, não foi do mesmo jeito que Cortina de Fogo. Eu vi uma edição provisória do filme e não sei o que penso dele. A premissa é interessante e a idéia nos foi apresentada por Wayne. Siri e eu desenvolvemos o roteiro, mas, durante as filmagens, as idéias dele iam mudando. O resultado não tem muito a ver com o que a gente escreveu. O que lhe interessa no momento em literatura? Quando estou escrevendo uma novela, acho muito difícil de ler ficção. Tenho lido outras coisas. No momento, estou devorando um livro bastante divertido. É a autobiografia de Lorenzo Da Ponte. Da Ponte foi um libretista do século 18 que escreveu a letra das mais famosas óperas de Mozart, como Don Giovanni, As Bodas de Fígaro e Cosi Fan Tutti. Ele teve uma vida muito louca e sempre quis ler esse livro, que agora foi reeditado. Lorenzo fez de tudo e, no final de sua vida, aportou nos EUA, onde se tornou o primeiro professor de italiano na Columbia University. Ele foi pobre, rico, enfrentou preconceitos, sofreu, amou... Para se ter uma idéia de sua personalidade, ele foi tanto amigo de Casanova quanto do cara que escreveu The Night Before Christmas (Clement Clarke Moore). Recomendo esse livro a todo mundo. O senhor já leu Machado de Assis? Tá brincando? Devorei dois livros dele nos últimos dois anos. Eu achei excelente aquele do cachorro (Quincas Borba).

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