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Luzes da cidade

Militando da poltrona

Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Quando o alerta apareceu na minha tela, via Twitter, pensei, nasce um Judas. O responsável pela morte do popular leão Cecil, no parque nacional do Zimbábue, era um dentista americano. Em uma hora, a rede social já fornecia informações copiosas sobre o ávido caçador Walter Palmer, cujo sorriso de marfim perfeito faria de seus dentes troféus, numa distopia de ficção em que os elefantes virassem a mesa. Palmer havia sido condenado antes por mentir para autoridades americanas sobre o local onde matou um urso e cumpriu um ano de liberdade condicional. Depois foi multado por pescar sem licença. E ainda teve que indenizar uma recepcionista do consultório que o processou por assédio sexual. O homem se comporta como o rei da selva mental que habita. A previsível explosão de ódio planetário ao dentista é sintomática do que os americanos chamam de ‘slacktivism’, a militância preguiçosa. É a indignação viral canalizada em ativismo que emprega apenas os músculos da mão ao teclado. Não nego que meu sangue ferveu a cada nova foto do mentecapto Palmer posando triunfal ao lado de um enorme animal morto - leão, alce, rinoceronte. O requinte de crueldade de sua insistência em só caçar com arco e flecha prolongou a agonia de Cecil. O leão fugiu na escuridão ao ser flechado e só foi encontrado 40 horas depois, quando recebeu o tiro de misericórdia do caçador a quem Palmer teria pago mais de US$ 50 mil de propina. Minha indignação não elimina o conhecimento de que o turismo de caçada de animais de grande porte é uma atividade legal. Americanos afluentes são maioria entre caçadores que matam uma média anual de 600 leões africanos. A atriz semiaposentada Mia Farrow, conhecida por se dedicar à causa dos direitos humanos em outros continentes, achou por bem tuitar para seus mais de 600 mil seguidores o exato endereço do dentista. Walter Palmer tem consultório numa pequena cidade de Minnesota onde a força policial não passa de 120 e onde o baixo índice de crime se reflete em propriedades sem cercas, expostas. Diante da tensão multiplicada na rede social, a ex-musa de Woody Allen e mãe adotiva serial não achou nada demais expor funcionários ou filhos do dentista a lunáticos violentos. Falo de gente como o militante da PETA, a organização de defesa do tratamento ético de animais, com 3 milhões de seguidores, que tuitou seu julgamento sumário do dentista: “ele merece a forca”. Mia Farrow, embaixadora de boa vontade da Unicef, não tem justificativa para ignorar o contexto, mas a vasta maioria dos defensores do leão Cecil desconhece detalhes sobre o Zimbábue, onde o brutal Robert Mugabe está no sétimo mandato. Ele comemorou, em fevereiro, 91 anos com um banquete cujo menu incluiu um leão, um elefante e cinco antílopes. Ninguém fez mais para dizimar os leões do Zimbábue do que o próprio Mugabe. No ano 2000, ele impôs uma reforma agrária tão calamitosa que, em 2003, 80% dos animais que viviam monitorados em parques já tinham morrido, vítimas de uma combinação de declínio econômico, demanda no comércio negro de marfim e chifre de rinoceronte e agricultores brancos expulsos de suas terras. Outra caçada em curso sob as barbas dos americanos não desperta tanta indignação. Ela pode ser monitorada no website shootingtracker.com. Nos primeiros 214 dias deste ano, houve 212 assassinatos múltiplos ou em massa por armas de fogo nos Estados Unidos. 

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