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‘Michael Kohlhaas’ no inferno das incertezas românticas

Clássico de Heinrich von Kleist, que virará filme, antecipa perplexidades do homem moderno

Por Luis S. Krausz
Atualização:

A história comovente e dilacerante de um mercador de cavalos de caráter irrepreensível que, à época de Martinho Lutero, lutou até a última gota de sangue para que lhe fosse feita a justiça é o tema da novela Michael Kohlhaas, de Heinrich von Kleist (1777-1811), agora à disposição do leitor de língua portuguesa. A partir de um enredo que faz pensar no livro de Jó por causa da devoção incondicional do seu protagonista a um princípio ético – neste caso, a justiça absoluta, a diké divina dos antigos gregos ou a Gerechtigkeit dos idealistas alemães – Kleist criou uma obra que evidencia a precariedade de todas as instituições humanas, as ambivalências às quais está sujeita, em todos os seus aspectos, a vida dos mortais, e a facilidade com a qual, sobre a terra, as coisas se transformam em seus opostos.

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Mal aceita à época da breve existência do seu autor, a novela, baseada em fatos históricos, tem hoje o estatuto de um clássico da literatura alemã: Kohlhaas, o protagonista, sempre orientou sua vida pelos mais nobres princípios éticos. Injustiçado, precipita-se no "inferno das vinganças insatisfeitas", é cegado pela sede de justiça e passa a ver a si mesmo como uma encarnação do "anjo da justiça de desce dos céus", "súdito apenas de Deus". Chega, inclusive, a encontrar-se com o próprio Lutero, a quem consegue persuadir.

Mas um furor que parece tributário direto da fúria divina, da Wut dos heróis das antigas mitologias pagãs germânicas, abate-se sobre Kohlhaas, tornando-o vítima da hybris, da desmedida e da cegueira. Perde de vista a justa medida das coisas por não se dar conta de que a condição humana é aquela da relatividade absoluta, e por não compreender que até mesmo a justiça deve ser dosada com justiça, sob pena de perverter-se.

Obra fundamental deste grande mestre do paradoxo, Michael Kohlhaas aponta para a falibilidade das disposições humanas como instâncias reparadoras dos atentados aos valores divinos e, no limite, para a impossibilidade de se fazer justiça: esta, como as demais categorias do idealismo, está fadada ao fracasso parcial no mundo precário, instável e multifacetado dos mortais. A desordem monstruosa do mundo, portanto, surge como a grande vitoriosa deste enredo que antecipa as perplexidades do homem moderno, liberto de dogmas, assim como antecipa o existencialismo e a estética expressionista.

A condição humana aqui representada é a da fragmentação, com a qual vêm à tona todas as contradições irreconciliáveis – como entre a necessidade de justiça e verdade e a necessidade de paz, forças opostas que, cada qual com sua lógica própria, dependem da aniquilação da outra para o seu triunfo. Ao retratar a perversidade inerente a tais dinamismos opostos, Kleist acaba por criar uma parábola de valor atualíssimo, que põe em xeque todos os fanatismos e aponta para o pântano das incertezas como única condição possível de existência. Outra questão abordada por Kleist é da irreversibilidade de todos os atos: como nada pode ser desfeito, a justiça absoluta também não pode existir. A imperfeição é a característica de todas as formas de autoridade e as causas humanas são sempre questionáveis e passíveis de serem contempladas por mais de um ponto de vista.

Dramaturgo e novelista, Kleist vinha de uma família aristocrática. Abandonou a carreira militar para dedicar-se à formação do espírito, conforme os parâmetros do idealismo alemão e do iluminismo francês. Sua prosa filosófica ilumina os absurdos inerentes à humanidade. Não por acaso, Kafka o reconheceu como um de seus mestres.

LUIS S. KRAUSZ É ESCRITOR E PROFESSOR DE LITERATURA HEBRAICA E JUDAICA NA USP

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MICHAEL KOHLHAASAutor: Heinrich von KleistTradução: Marcelo BackesEditora: Civ. Brasileira (R$ 35, 176 págs.)

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