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Meu traumatismo ucraniano

Andava eu pelos 23 anos e estava recém-chegado à redação do Suplemento Literário do Minas Gerais, que Murilo Rubião tivera a audácia de criar como encarte semanal do insípido diário oficial mineiro. Fiado num conto que ajudara a premiar num concurso, Murilo me levou para trabalhar com ele, na mesma sala da vetusta Imprensa Oficial onde, quatro décadas antes, dava expediente o jovem Carlos Drummond de Andrade.

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Por Humberto Werneck
Atualização:

Sinto vergonha, já disse, ao recordar a petulância com que eu, muito à vontade, dava palpite nos contos que Murilo generosamente me submetia, tendo chegado a pedir, com veemência, que cortasse uma palavra – despautério – numa joia, O Ex-Mágico, mais antiga do que eu, capaz, ainda hoje, de não mais do que bijuteria. Devo penitenciar-me pelas demasias do verdor da idade? Achava-me. Juventude, juventudo.

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Ao dar poleiro ao frangote, Murilo deu também alternativa de ganha-pão a quem, engastalhado num curso de direito escolhido por eliminação, jamais conseguiu imaginar-se num fórum, a inalar os ácaros de desmilinguidos processos. No Suplemento, fui foca e, diria algum desafeto, nisso fiz carreira. Jornalista acidental antes de o ser apaixonadamente, não entrei, caí no jornalismo.

A primeira entrevista foi com uma jovem sueca (nada a ver com as beldades nórdicas das revistas de mulher pelada) que em seu país se dedicava a divulgar nossa literatura.

A segunda, em agosto de 1968, foi com ninguém menos que Clarice Lispector, de passagem por Belo Horizonte. Murilo me encarregou de lhe pedir uma entrevista, além de um conto para o Suplemento. Principiou ali um episódio para mim traumático, de alguns já conhecido mas que, até como purgação, deve ser contado agora na plenitude dos detalhes.

Olhar. Fiz a primeira pergunta e a fúria de Clarice desabou sobre o aprendiz de repórter Foto: Divuglação

Lembro-me do misto de unilateral intimidade e embasbacada reverência com que abordei Clarice numa roda, na Livraria do Estudante. Estribado em meia dúzia de contos, considerava-me escritor também, e foi sem humildade de principiante que me dirigi a ela.

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Não sabia ainda dos espinhos que Clarice costumava eriçar no trato com desconhecidos, e gelei quando, ao ouvir o pedido de colaboração (que nunca veio), ela indagou, com rude incredulidade: “Mas vocês pagam?” E acrescentou, com a dicção rascante de sua língua presa, que estava “muito pobrrre”. Entre outros safanões da sorte, tinha vivido, dois anos antes, o pesadelo daquele incêndio que por pouco não a matou e que apagou um tanto de sua legendária beleza.

Comecei a cair, a desabar em mim: o Suplemento pagava a seus colaboradores 10... já não sei qual era a moeda em circulação na época; 10 dinheiros. Eu ganhava 400, que mal davam para minhas moderadas farras de moço. E íamos pagar 1/40 disso a Clarice Lispector!

Acesa em mim a luz amarela do semancol, fiz no improviso meu dever de casa. Na minha espessa ignorância, também jornalística, eu não sabia de existência de algo chamado edição – achava que uma entrevista transcorreu tal e qual a lemos. Bastava um bom começo, que julguei ter encontrado na hiperbólica declaração de um crítico, de que “A Paixão Segundo G.H. não é um romance”.

Seguríssimo, lasquei a primeira pergunta: “A Paixão Segundo G.H. não sendo um romance...”

Nem pude a concluir a frase. “COMO não é um rrromance?”, rugiu Clarice Lispector, petrificando o aprendiz de repórter a seu lado no sofá. Uma foto teve a crueldade de registrar o instante em que, fulminado por um olhar enviesado e hostil, olhar que nem a barata de A Paixão... mereceria, baixei a cabeça, disposto a ir lá dentro me suicidar. Não sei como consegui terminar a entrevista, que, prudentemente resolvida em texto corrido, e não como perguntas/respostas, resultou até razoável, mas que nem assim ousei assinar.

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Quando, no final, trêmulo, estendi meu exemplar de A Maçã no Escuro, Clarice reagiu com aspereza: “Não tenho caneta”. Como num canhestro pedido de desculpas, saquei uma esferográfica que tinha comprado num quiosque em Buenos Aires, canetinha sem pedigree, porém carregada com tinta violeta, que por isso eu raramente usava, poupando-a, quem sabe, para escrever meu grande romance, ou garatujar minhas últimas palavras.

Dedicatória concedida, Clarice suspendeu a caneta e, sem desamarrar o rosto, mandou-me a pá de cal:

“Posso ficarrr parrra mim?”

“Po-o-de...”, consegui tartamudear.

Fim da história? Ainda não. Décadas depois, folheando o catálogo de uma exposição comemorativa dos 60 anos de Chico Buarque, dei com a reprodução de um bilhete de Clarice para o compositor, por quem tinha declarada queda. O texto, datilografado, tem assinatura em tinta... você adivinhou a cor!

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Pode ser, pensei, a minha chance de entrar na história da literatura brasileira.