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Luzes da cidade

Meu povo

'Ele fala e seu povo presta atenção. Quero que o meu povo faça o mesmo'

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Dois vídeos de propaganda recém-revelados provocaram perplexidade planetária. O primeiro durava pouco mais de quatro minutos e, quando foi exibido aos repórteres americanos após o encontro de Donald Trump com Kim Jong-un em Cingapura, eles logo pensaram se tratar de uma peça de propaganda norte-coreana. Misturava exaltações ao encontro de cúpula, com armas, cavalos correndo sobre água e até Sylvester Stallone. “Em que país estamos?”, perguntou um repórter espantado. Quem estivesse próximo ao telão podia notar uma discreta marca d’água da Casa Branca. “Espero que tenham gostado,” disse, em seguida, na coletiva, o presidente americano. “Acho que ele adorou,” concluiu. O vídeo tinha sido feito por encomenda para agradar a Kim e, como explicou o chefe de estado de 72 anos, como não havia telão na sala de reuniões, “mostramos a ele em cassete, quer dizer, um iPad.” O segundo vídeo, de 42 minutos, revelava bem mais do que a montagem desconexa de imagens de arquivo do vídeo da Casa Branca. A trilha sonora variava entre hino de parada militar, música melosa, e até plágio descarado da trilha de Indiana Jones. A narrativa exaltada parecia ser de Ri Chun Hee, a famosa Pink Lady, a âncora de quimono rosa que hipnotiza regularmente 25 milhões de norte-coreanos na TV estatal. Mas a escolha de imagens sobre a cúpula histórica, desde a partida de Kim num avião emprestado pela China, até a encenação da volta triunfal, é que merece destaque. Num país onde a única TV é controlada pelo estado, onde é proibido possuir um rádio em casa para não acessar notícias da China ou da Coreia do Sul, é difícil imaginar que a edição foi um descuido de mensagem. Vemos o cortejo da limusine de Kim percorrer as limpas ruas de Cingapura, entre modernos arranha-céus, em toda apoteose capitalista. Vemos close-ups de marcas de luxo como Cartier e Dolce & Gabbana. Vemos Kim sair à noite admirando os luxos da ilha, inclusive a espetacular piscina do terraço do hotel Marina Sands, onde estava hospedado. Em suma, a TV estatal mostrou aos norte-coreanos um mundo cosmopolita que não sabiam existir, oposto à dieta diária de Juche, a ideologia socialista e etno-nacionalista martelada há 60 anos sobre a população. É também um mundo de fartura que precisava ser escondido, já que o baixo índice de nutrição faz com que os norte-coreanos sejam, em média, de 3 a 8 centímetros mais baixos do que seus irmãos do sul e o país perdeu cerca de 2 milhões de habitantes para a grande fome dos anos 1990. Qual será a aposta? Um modelo chinês de capitalismo estatal com aumento de repressão? Sabemos que, ao contrário de seu pai, Kim Jong-il, que tinha pouco interesse em modernização econômica, enquanto permitia algum acesso à informação, Kim, educado numa escola suíça, implantou uma semi-economia de mercado e apertou o torniquete da censura. Os dois vídeos mostraram também que os norte-coreanos são mais profissionais na arte da propaganda stalinista. A cúpula de Cingapura foi uma grande vitória para Kim, que nada cedeu e conseguiu o que o pai e o avô não conseguiram: posar em igualdade com um chefe de estado americano recém-saído do vexame da cúpula do G7. E isto, mesmo antes de os tradicionais aliados dos EUA vazarem conversas embaraçosas com o tuiteiro chefe, como o argumento de que a Crimeia foi corretamente invadida pela Rússia porque a população fala russo. Mas, a esperança é a última que morre. Na sexta-feira, durante uma incoerente entrevista improvisada que provocou correria entre assessores e o Serviço Secreto, o presidente americano disse, sobre o ditador assassino que chama de honrado: “Ele fala e seu povo presta atenção. Quero que o meu povo faça o mesmo”, esquecendo que, do lado de cá do mundo, presidente não tem povo, é empregado dele.

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