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Meu ciclo do ouro

Era fascinante o espetáculo daquele homem a derreter moeda para restaurar nossos dentes

Por Humberto Werneck
Atualização:

Saudade do tempo em que eu ia ao dentista para extrair dinheiro.

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Há um pouco de exagero neste arroubo nostálgico, ocorrido aqui na sala de espera do consultório ao qual me trouxe um molar malcomportado. No tempo a que me refiro, havia também ocasiões em que, literalmente boquiaberto, eu permitia que o dr. Hugo escarafunchasse as mandíbulas de um futuro cronista, o segundo de seus 11 filhos. Ao constatar que não existe boticão carinhoso, por mais que seu operador o seja, mais de uma vez me perguntei, transbordante de culpa católica, se aquele tormento não seria o preço a pagar pela sem-cerimônia com que eu subia ao 6.º andar do edifício Bom Destino – mais que nunca merecedor deste nome – para batalhar um suplemento de mesada. 

Ainda que possa ter havido negativas, e com certeza houve, estribadas quando menos no meu lamentável desempenho escolar, sinceramente não me lembro de nenhuma vez em que tenha saído do consultório paterno sem restauração nas finanças cariadas. O dr. Hugo era homem generoso. Boa parte de sua vasta clientela era atendida de graça. Parentes, amigos, padres e freiras de lá saíam sem meter a mão no bolso. Folgado, eu contribuía para ampliar o time das gratuidades, ao pedir ao pai que socorresse algum colega do meu curso de direito. 

E havia também supostos pagantes, não raro gente endinheirada, que na hora do vamos ver não o eram, ou que rolavam interminavelmente sua dívida odontológica. Lembro de mamãe furiosa quando lia, na coluna social, que os grã-finos Fulana e Beltrano andavam pela Europa, a “estrafegar” (dona Wanda adorava este verbo raro e expressivo) em prazeres uma grana que deviam a meu pai. Dizia que o dentista, ao contrário do médico, não é visto com alegria, estando sua imagem associada sobretudo ao zunido do motor e ao desconforto de uma boca escancarada. De qualquer forma, nunca ouvi falar de dentista que tivesse livrado alguém da morte, como fazem tantos médicos, merecedores por isso da gratidão e reconhecimento até material de seus pacientes. Regalos de fim de ano, como aqueles que inundavam casa e consultório dos profissionais da medicina? Um ou outro, e olhe lá.

Consultório, por sinal, era palavra pouco ouvida em nossa família, na qual se preferia “gabinete” – aquele lugar onde o papai ralava (e polia) o dia inteiro. Cirurgião dentista de seu tempo quase nunca recorria a um protético para executar em metal, coisa rara hoje em dia, peças por ele moldadas em cera. Já contei (O Outro Lado da Moeda) que meu pai se incumbia de todo o processo – da abertura das cavidades ao seu preenchimento com restaurações que ele mesmo fundia. Embasbacado, ainda o vejo a empunhar o maçarico e fazer o ouro líquido (obtido, às vezes, com o sacrifício de moedas de libra esterlina) ir obturar no outro braço da centrífuga o espaço antes ocupado pelo molde em cera. 

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É inapagável a lembrança de meu pai a dar acabamento às peças assim produzidas, para isso utilizando um ruidoso motor, o “motor de corda”, anterior aos que zuniam, “a jato”, introduzidos no Brasil em algum momento dos anos 50. Já contei também que o pó de ouro resultante daquele trabalho de polimento, feito sobre uma bandejinha de cristal, era recolhido em vidrinhos vazios de material odontológico, para posterior reutilização – e que um dia um ladrão levou todo o ouro em pó amealhado pelo dr. Hugo. 

Daquela centrífuga, daquele gabinete, saíram restaurações que haveriam de impressionar dentistas – ou, quando veio o tempo de linguagem enfeitada, “odontólogos” – a que os filhos do dr. Hugo precisaram, mais tarde, confiar seus marfins. Meu irmão Otávio conta que um dia procurou o dentista da empresa de engenharia onde trabalhava, em São Paulo, e o camarada que o atendeu, ao deparar com restaurações feitas por meu pai, jogou a toalha: “Sou arrancador de dente”, esquivou-se ele, “não meto a mão em trabalhos como esses!”. Mandou um cartão para o colega mineiro, cumprimentando-o. 

Também eu repassei ao autor os elogios do dr. Marcel Amar, meu dentista em Paris, e os que ouvi no primeiro consultório a que recorri em São Paulo, para onde vim há quase meio século. Naquela ocasião, aliás, me dei conta de que saíra das mãos do dr. Hugo para me entregar a uma xará de minha mãe, e por pouco não saltei da cadeira da dra. Wanda para me deitar, em posição fetal, no divã mais próximo. *** Entre os asteriscos acima e a retomada do papo, estive sob os cuidados de um profissional competente, o qual, depois de dar a má notícia, inesperada também para ele – impossível salvar o dente –, executou com sucesso a solitária alternativa que restava. Hora e meia depois de aqui entrar, eis que um antigo moleque, dado a subir ao gabinete do pai para dele extrair uns trocados, se vai agora do consultório do dr. Alexandre, onde deixou dinheiro vivo e um molar falecido. 

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