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Coluna quinzenal do escritor Ignácio de Loyola Brandão com crônicas e memórias

Opinião|Meu blazer e um tal Boric

Quando o blazer voltar, terá testemunhado uma virada na política latino-americana

Atualização:

Não sei quantos perderam casacos, blazers, paletós ao longo da vida. Quanto a mim, devo ser recordista em perdê-los. Não sei se tem significado. Esquecimento, distração, fagulhas de que a nossa mente se desmorona? Há quem interprete tudo, gestos, palavras. Aos oito anos, um parente me deu uma capa de chuva marrom, de segunda mão. Fiquei fissurado. Tia Maria, costureira, transformou-a em um mantô. Meu bem mais precioso. Certa noite, fomos à quermesse da igreja de Santa Cruz, minha mãe era cozinheira em uma das barracas, que tinha frangos, quitutes, quentão... Dez da noite, meu avô Vital foi nos buscar, mamãe nos preparou dois cachorros-quentes e Luiz, meu irmão, e eu voltamos para casa a pé. Cheguei em casa, dei conta, com tristeza, que tinha esquecido meu mantô na barraca. Voltar? Vovô, já velho, disse não, que eu aprendesse a zelar pelas minhas coisas. Rezei esperando que minha mãe percebesse. Não percebeu. Aos 18 anos, noite fria, fui de casaco ao cine Odeon. Dentro da sala estava quente, muita gente concentrada. Quando saí, fiquei olhando para a Alda Lupo e larguei o casaco na poltrona. Em 1963, em Madri comprei um casaco de couro, o máximo, e ele ficou na sala de embarque do aeroporto. Outros dois blazers ficaram no bagageiro de aviões em viagens pelo Brasil.

O escritor Ignacio de Loyola Brandao posa para fotos na casa da Academia Brasileira de Letras no bairro do Cosme Velho, zona sul do Rio de Janeiro Foto: FOTO FABIO MOTTA / ESTADÃO

Há pouco fiz cinco rápidas viagens pelo Brasil pelo programa Diálogos Contemporâneos. Brasília, Goiânia, Curitiba, Porto Alegre, Maceió. Primeiros presenciais depois de ano e meio de jejum. Ao entrar no aeroporto em Curitiba, vi que tinha deixado no hotel um blazer de linho azul. Liguei para Aurea Leminski que foi minha “cuidadora” o tempo inteiro, me levou a passear, a comer, ao teatro, atenta a tudo. Eu, orgulhosíssimo, uma mulher dessas, me fez sentir grande figura. Imagine, filha de Paulo Leminski e Alice Ruiz. Liguei para Aurea, ela correu ao hotel, recolheu o blazer, estava cheia de coisas a fazer, os Diálogos traziam um escritor atrás do outro, os Correios estavam cheios, o casaco embrulhado, pronto para viajar. Coisas burocráticas se misturaram a azáfama (epa!) de fim de ano pandêmico, todo mundo extraviado. Passadas semanas, liguei, Aurea atendeu. Começou a rir. “Seu blazer? Sabe onde está agora? Aqui comigo, em Santiago do Chile. Viemos para as eleições. Na volta, devo passar por São Paulo, te levo pessoalmente. Sabe onde estamos agora, eu com seu blazer? Ouvindo Boric, o novo presidente do Chile, falar. Quando ele, o blazer, voltar terá testemunhado uma virada na política latino-americana.” Sim, o Boric, esse tal Boric...

Opinião por Ignácio de Loyola Brandão
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