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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Mentes imprudentes

Obra trata com carinho Walter Benjamin, o mais pranteado mártir do nazi-fascismo

Atualização:

Como podem as pessoas inteligentes ser atraídas por formas de políticas evidentemente tirânicas?

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A questão é antiga, mas parecemos fadados a ouvi-la até o final dos tempos. Bastará alguém mencionar, por exemplo, o filósofo alemão Martin Heidegger, que, pronto, a conversa retomará o conhecido rumo, chegando aos mais recentes intelectuais que se deixaram seduzir por algum tipo de autoritarismo, de direita e esquerda, ou, mesmo, por tiranos sanguinários como Pol Pot e Pinochet. Sem contar aqueles que, mesmo movidos por ilusões regenerativas, serviram às mais diversas ditaduras, sem exclusão das nossas (Estado Novo e Golpe de 64).

Atrás de uma resposta a essa questão, o cientista político americano Mark Lilla foi até a Grécia de Platão, ao suposto primeiro caso de promiscuidade entre a filosofia e a política – quando o filósofo fez três fracassadas tentativas de persuadir Dionísio, o jovem tirano de Siracusa, a humanizar-se um pouquinho, a ser justo e pensar grande – para em seguida concentrar-se nos pensadores ditos modernos, sobre os quais publicou vários ensaios na New York Review of Books e no Times Literary Supplement. Que, reunidos no livro Reckless Mind – Intellectuals in Politics, acabam de ser traduzidos pela Record: A Mente Imprudente – Os Intelectuais na Atividade Política (193 págs., R$39,90).

Lilla, um brilhante erudito liberal de escrita fluida e clara, um Leo Strauss de bermudas, digamos assim, acredita que “quando os filósofos tentam tornar-se reis, ou bem sua filosofia será corrompida, ou então a política será corrompida, ou ambas serão”. Não diz com todas as letras, mas deixa implícito que o único lugar seguro para um intelectual é a torre de marfim.

Filotiranos. Foi esta a expressão que ele criou para designar os intelectuais europeus que receberam de braços abertos os regimes fascistas e comunistas, ao longo do século 20, e não se desvincularam a tempo dos movimentos de libertação nacional que logo se transformaram em autocracias tradicionais, ensejando sofrimentos e miséria aos povos que haviam libertado.

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Nesse rótulo cabem desde os filósofos nascidos ou amadurecidos na conturbada República de Weimar, que se dividiram entre o comunismo e o fascismo, a Sartre e outros apóstolos da Revolução Cultural chinesa, a Michel Foucault e quem mais tenha posto as democracias ocidentais e suas cruéis imperfeições no mesmo nível moral dos gulags soviéticos.

São oito os protagonistas de A Mente Imprudente, cinco dos quais alemães vitimados pelo nazismo: o indefectível Heidegger (1889-1976), Hannah Arendt (1906-1975), Karl Jaspers (1883-1969), Carl Schmitt (1888-1985), Walter Benjamin (1892-1940), Alexandre Kojève (1902-1968), Foucault (1926-1989) e Jacques Derrida (1930-2004).

Heidegger aderiu ao nazismo e serviu ao 3.º Reich. Lilla recapitula os detalhes relevantes dessa conversão e do neurótico relacionamento intelectual e amoroso do filósofo com Arendt, mas seu principal objetivo é descobrir em que medida a filiação ao nazismo influenciou as ideias existencialistas de Heidegger, se a adesão foi um erro de julgamento político, uma “aberração temporária”, como o próprio filósofo a diagnosticou, ou se derivou das profundezas de sua filosofia. Será possível ver O Ser e o Tempo como uma obra criptonazista? Lilla não esclarece essa dúvida.

Jaspers, mentor de Heidegger, tentou demover o discípulo: “Hitler é um ignorante”. Inútil. Já então reitor universitário ungido pelo Reich, Heidegger deu de ombros e confessou ter-se encantado pelas “mãos maravilhosas” do Führer. Bizarro fetiche.

Schmitt, teórico político e jurídico, foi o juiz coroado do 3.º Reich. Defendia a prática romana de designar ditadores temporários para romper arbitrariamente um impasse entre classes sociais em competição – a tal decisão soberana. Para ele, adversário político não existia; eram todos, por definição, inimigos, a serem destruídos com ajuda dos amigos. Seu antiliberalismo conquistou-lhe prestígio e influência entre os intelectuais de esquerda. Bizarra confluência.

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Talvez porque poucos a conheçam ou dela se recordem, a história de Schmitt talvez seja a mais fascinante do livro, em pé de igualdade com a do relativamente bem conhecido Kojève, outro anfíbio ideológico, um messiânico de esquerda (“Sou a consciência de Stalin”) nascido na Rússia e consagrado na Paris dos anos 1930, onde teve a seus pés todos os matizes da intelectualidade francesa, que assistiu de joelhos a um legendário seminário dele sobre Hegel.

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Seu lado apocalíptico acomodou-se ao integrado e Kojève passou o pós-guerra servindo à burocracia de sucessivos governos da França, como conselheiro econômico e cultural. De sua peculiar leitura de Hegel, extraiu a tese do “fim da história”, antecipando-se a Fukuyama e nos deixando à espera de “um estado universal e homogêneo”, por enquanto outra utopia messiânica.

Benjamin, o mais pranteado mártir do nazi-fascismo, oscilou por longo tempo entre a metafísica teológica e o materialismo histórico. Encantou-se pelo comunismo, ali por volta de 1924, ao privar da amizade de Ernst Bloch, em Capri, namoro de apenas dois anos, terminado em Moscou. Lilla o trata com respeito e carinho.

The Reckless Mind chegou às livrarias americanas dois dias antes dos atentados de 11 de setembro. Ao reeditá-lo, ano passado, o autor acrescentou-lhe um posfácio, atualizando suas análises ao colapso da União Soviética, ao mercantilismo despótico da China, aos conflitos tribais, clânicos e sectários nos Estados pós-coloniais da África e Oriente Médio, aos problemas da globalização e da imigração, e, last but not least, à força colossal, tirânica, da internet na propagação de ideias formidáveis e também, infelizmente, obscuras e medievalescas. Quando não simplesmente ignorantes, como a afirmação, frequente nas redes sociais daqui, de que o partido da Alemanha nazista, só porque trazia a palavra socialista no nome, professava o comunismo.

Opinião por Sérgio Augusto
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