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Memórias conduzem nova peça de Guarnieri

O autor, que traçou o panorama do teatro engajado na luta de classes, escreveu o épico musical A Luta Secreta de Maria da Encarnação, que reúne fatos que mobilizaram politicamente o País no século 20

Por Agencia Estado
Atualização:

A reportagem ocorreu coincidentemente no dia 24 de agosto, data da morte de Getúlio Vargas, em 54. Foi o próprio Gianfrancesco Guarnieri, de 67 anos, quem fez a associação durante a entrevista exclusiva ao Estado, em sua casa na Cantareira. E não o fez por acaso. Afinal, para escrever sua nova peça, o épico musical A Luta Secreta de Maria da Encarnação, o autor teve de relembrar a morte do presidente. Guarnieri serviu-se das próprias memórias para tecer um colar com os fatos que esquentaram politicamente o País no século 20. O inventário, que recolhe desde as condições de vida do cangaço à luta contra as forças da repressão dos 60 e 70, é curiosamente absorvido pelos olhos de uma mulher do povo, cujo nome dá título ao espetáculo, que vive toda a sorte de fatalidades. A Guarnieri, o suicídio de Getúlio deixou não só as marcas políticas de praxe, mas o crivo de um episódio que ele retoma no novo texto. Nas manifestações da população de São Paulo, ao saber da morte do presidente, a polícia foi acionada e usou bombas de efeito moral. Então, houve o flagrante fotográfico: um policial protegendo com seu corpo um menino em pânico. O jovem Guarnieri estava nas manifestações, mas tomou conhecimento da cena por uma foto publicada em uma das revistas da época e que se tornou antológica. "Para mim, comunista que era, a imagem foi um verdadeiro choque. Era ver o inimigo numa atitude humana." A imagem, à época inaceitável aos olhos do jovem esquerdista, explode agora na visão humanista que o autor confere ao personagem Evaristo, um sargento, marido de Encarnação, que morre assassinado ao tentar defender uma mulher de ser espancada pelo marido, ganhando cortejo fúnebre com salvas de fuzis. É Encarnação que conversa com Evaristo morto, como um alter ego de Guarnieri ao perceber a força da imagem que chacoalhava suas crenças naquele momento: "Nunca pensei que um homem pudesse ser daquele teu jeito!..." Essa atitude humanista e lírica, característica do autor em sua longa trajetória no teatro, aguça a curiosidade sobre seu posicionamento político nos dias que correm. Afinal, filho de italianos que fugiam do fascismo, Guarnieri cedo se ligou aos movimentos estudantis no Brasil. Sempre movido a altas temperaturas, traçou o panorama de um teatro engajado na luta de classes. "Não me intitulo nada, mas também faço questão de dizer que não tenho nada a renegar." Com voz baixa, convalescendo de um problema de saúde, o dramaturgo continua a revisionar: "O que sou realmente? Apenas uma pessoa atenta ao que se passa. Faço a defesa total dos excluídos, dos caras que não têm como sair dessa situação. A gente sabe que a saída é política, que passa pelo acesso da população à instrução, mas talvez a gente só não deva ser muito apressada." "Eu queria soltar os cachorros nesta nova peça", comenta o autor da renovadora Eles não Usam Black-Tie, de 1956, que colocava em cena pela primeira vez a luta de operários brasileiros do País. Guarnieri foi um dos criadores do Teatro de Arena, fundado em 1953 por José Renato. Muitos de seus textos se tornaram clássicos da dramaturgia nacional, a partir de meados dos anos 50: Gimba, A Semente, Arena contra Zumbi, Arena contra Tiradentes e Um Grito Parado no Ar. Sua última criação foi com o filho Cacau Guarnieri, em 1998: Anjo na Contramão. "A comunicação hoje é muito difícil. O que as pessoas estão querendo, será que apenas morrer de rir?", se pergunta em tom queixoso. Emenda em seguida: "Mas parei com esse negócio de achar que está tudo ruim e penso que se dez pessoas se interessarem por aquilo que você faz, já vale." Painel ? A Luta Secreta foi escrita em quatro meses de total isolamento do dramaturgo na residência da Cantareira. Mas o embrião teve início no ano passado, quando foi convidado pelo governo do Estado a escrever uma peça calibrada nos 500 anos de Descobrimento do Brasil. A parceria não vingou, mas a idéia acabou ganhando asas, quando o produtor Marcos Weinstock, à frente do Instituto Takano de Projetos ? braço cultural da Gráfica Takano ?, encomendou a peça a Guarnieri. "Desde o início, queria um personagem feminino, não feminista. Cheguei a pensar num coro que simbolizasse a mulher", conta. "Mas percebi que não dá para criar a mulher no geral. Era preciso falar da situação terrível da mulher no Brasil. Não é como em alguns países da Ásia, mas aqui tem sim uma coisa terrível, o peso da cultura machista excluindo a mulher", salienta. "Um dia me bateu um nome: Maria da Encarnação. E a palavra encarnação significava a possibilidade de concretizar no palco a história de uma única mulher, que simbolizasse todas." A protagonista da história é brasileira e pobre, nascida no cangaço, decidida a mudar para a cidade grande carregando por motivação as marcas de um estupro. Na maturidade, envolve-se com a causa do Partido Comunista e na velhice desespera-se à procura das filhas desaparecidas, uma delas presa pelo regime militar. Assim começa a história, com a velha Maria da Encarnação amargando a dor da perda das filhas e revisando sua trajetória tendo por interlocutor o marido morto. Há marcadamente um timbre poético costurando as cenas de sua juventude, maturidade e velhice, que contrastam significativamente com as vicissitudes que recaem sobre a personagem do começo ao fim. O currículo de Maria da Encarnação vai se revelando aos poucos, em forma de flash-back. O acúmulo de desgostos e humilhações sofridos pela personagem, de caráter individual e geral ? do estupro ao assassinato do marido, da inserção no Partido Comunista ao Golpe de 64 e o desaparecimento de suas filhas ?, consente-se em pinçar a personagem do redemoinho moral que a condenaria à prisão por seus atos finais. Um Brasil moderno é evocado nos recortes que Guarnieri escolheu para modelar seus personagens: não só o cangaço ou a morte de Vargas, mas a força do Partido Comunista no Brasil, o Golpe de 64, a injustiça social, a desagregação familiar, o extermínio cultural. "Ao artista cabe uma função muita determinada", assegura Guarnieri. "É sempre desvendar realidades existentes, com o objetivo de suscitar uma série de efeitos e novos pensamentos nas pessoas."

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