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Médico brasileiro segue trajetória de Girolamo Cardano, autor do século 16

Texto do brasileiro é o melhor testemunho das inúmeras marcas deixadas pelo sábio

Por Elias Thomé Saliba
Atualização:

Demonizado durante séculos pela Igreja e acusado de herético e excêntrico por ter elaborado o horóscopo de Jesus Cristo, seu nome só é lembrado quando alguém quer saber a origem de “cardã” – nome do eixo com juntas universais que até hoje é equipamento de ônibus e caminhões –, que ele desenhou pela primeira vez. Ou quando, muito raramente, se fala na “fórmula de Cardano” para a resolução de equações matemáticas, que outros inventaram, mas que ele foi o primeiro a divulgar.

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Recentemente, na onda de valorização do conhecimento do aleatório e dos sistemas complexos, o seu Livro dos Jogos de Azar, publicado em 1581, chegou a ser visto como um capítulo importante na história de uma área de conhecimento limítrofe, provisoriamente designada como “ciências da incerteza”. Estamos falando de Girolamo Cardano (1501-1576), que tem sua trajetória minuciosamente reconstruída pelo médico brasileiro Raul Emerich. (Cardano: Ascensão, Tragédia e Glória na Renascença Italiana) Apesar da opção pelo romance histórico, a pesquisa realizada por Emerich é impressionante e inovadora, já que a respeito do polêmico sábio renascentista, pelo menos em nossa língua, não se publicou nada de comparável.

Como se costuma dizer, no romance histórico o autor desfruta de uma espécie de liberdade condicional de criação, já que esta é limitada pela fidelidade ao contexto histórico da época. Apesar de criar alguns personagens que não existiram de fato e imaginar os encontros de Cardano com Aldo Manuzio, Nostradamus, Ambroise Paré ou Montaigne, Emerich respeita escrupulosamente os dados históricos, descrevendo, com refinamento e precisão, os ambientes mentais das cidades italianas no renascimento.

Examinando a vida de Cardano vem logo a pergunta inquietante: como foi possível que ele sobrevivesse sofrendo, mais do que outras figuras do renascimento italiano, de tantas e tão inumeráveis agruras? Filho ilegítimo, começou sendo rejeitado, já que sua mãe detestava crianças e, ao ficar grávida, preparou um chá – uma espécie de pílula do dia seguinte ao estilo do século 16 – que não deu resultado, nascendo um bebê frágil e doente que, no entanto, sobreviveria até mesmo ao surto de peste que dizimou seus outros irmãos. Por causa de sua história familiar, Cardano foi por três vezes rejeitado pelo Colégio de Médicos de Milão, sendo aceito apenas quando já havia ganho fama europeia. Tirando isto, Cardano possuía o perfil típico de um sábio renascentista, com amplo domínio da cultura clássica, mas ainda mesclada por um misticismo renitente que fazia com que ele acreditasse em presságios e augúrios, percebidos em corvos no telhado, voo de passarinhos e uivo dos cães.

Contemporâneo do editor veneziano Aldo Manuzio – que foi amigo de seu pai, Fazio – Cardano viveu intensamente a autêntica febre tipográfica que inundou a Europa de livros nas duas primeiras décadas do século 16. Publicou mais de uma centena deobras, abrangendo uma ampla gama de assuntos em filosofia, medicina, matemática e ciências. Foi professor de Medicina na Universidade de Pavia e ganhou fama quando tornou-se médico e, em alguns casos, astrólogo de nobres das cortes europeias. A partir dos antigos escritos do rabino Maimônides, esforçou-se por estudar um tratamento para a asma, que, na época, era (mal) descrita como opressão respiratória. Foi particularmente bem-sucedido ao cuidar de um cardeal na Escócia, o que fez deslanchar sua fama europeia, mas também ajudou-o a criar inimigos no mundo católico.

Com base na sua autobiografia e nos sempre polêmicos relatos dos seus outros biógrafos, Emerich reconta a queda de Cardano, tão rápida quanto sua ascensão. A história dos seus três filhos virou tragédia bastante apropriada a uma narrativa romanesca: a filha Chiara seduziu o irmão mais velho e morreu após a gravidez; o mesmo irmão, Giovanni, virou médico mas assassinou a mulher e acabou executado na prisão; e o filho mais novo, Aldo, que, quando criança adorava torturar animais, transformou a paixão em trabalho, tornando-se um torturador freelancer da Inquisição. Emerich é bastante hábil em descrever a cena na qual Cardano, preso pelo Santo Ofício, reconhece assustado o seu próprio filho por trás da máscara do carrasco.

Poucos anos antes de sua morte, Cardano consegue o perdão papal e circula pelas ruas de Roma com vestes estranhas, falando sozinho e gesticulando para ninguém em particular e ignorado por todos. Na sua autobiografia, Cardano escreveu que possuía aquela “ambição inabalável de deixar a sua marca no mundo”. O romance histórico, admiravelmente bem escrito por Emerich, talvez seja o melhor testemunho das inúmeras marcas deixadas pelo inquieto sábio renascentista.

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ELIAS THOMÉ SALIBA É HISTORIADOR, PROFESSOR DA USP E AUTOR, ENTRE OUTROS, DE RAÍZES DO RISO

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