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Medeia é revisitada em nova peça

Espetáculo propõe defesa da figura mitológica conhecida por matar os filhos

Por Maria Eugenia de Menezes
Atualização:

Medeia é a mulher que matou o irmão e, ao fugir da terra natal, jogou os pedaços ao mar para afugentar seus perseguidores. É a feiticeira que se apaixonou por Jasão e, quando preterida, resolveu vingar-se assassinando os próprios filhos. Eis a imagem que paira no imaginário ocidental, difundida pela mitologia grega e, especialmente, pela tragédia de Eurípedes. Mas não é essa a personagem que encontramos em Medeia Vozes.

No espetáculo, que a companhia gaúcha Tribo de Atuadores Ói Noiz Aqui Traveiz traz a São Paulo, Medeia livra-se da imagem de infanticida e aparece representada em outros termos: trata-se da mulher que ousou desafiar a política estabelecida, que é punida por seu senso de independência e liberdade, banida da cidade por saber de crimes que não devem ser revelados.

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A base para esse Medeia Vozes – que foi um dos destaques da última edição do festival Porto Alegre em Cena – é o romance homônimo da alemã Christa Wolf (1929-2011). Em suas investigações, a escritora bebeu em outros estudiosos – de arqueologia, mitologia e sociologia. Retornou às bases do matriarcado primitivo e da fundação das sociedades. Tudo para chegar à conclusão de que a imagem que se perpetuou não é mais do que uma imposição dos valores e das necessidades do patriarcado.

"Medeia era uma curandeira, portanto, alguém que tinha uma relação muito forte com a vida”, comenta a atriz Tânia Farias, que interpreta a protagonista da montagem. “Naquela época, da origem do mito, também é preciso considerar o valor que se dava à questão da geração, a esse papel desempenhado pelo feminino. Por que justamente essa mulher, com essa consciência, se revoltaria contra seus filhos?”

Em meio à pesquisa para conceber a peça, o grupo do Rio Grande do Sul também se viu compelido a traçar paralelos com outras “Medeias” – que viveram em outras épocas e em outros grupos étnicos, mas enfrentaram perseguições e dificuldades semelhantes. Na trama, existe lugar para a indiana Phoolan Devi – casada aos 11 anos, diversas vezes violentada e espancada –, que conseguiu ser eleita para o parlamento de seu país. Cabem as vozes das ativistas políticas Rosa Luxemburgo e Ulrike Meinhof. E também o depoimento da modelo somali Waris Dirie, que denunciou a mutilação genital da qual foi vítima e tornou-se embaixadora da ONU. “São mulheres muito diferentes, de realidades distintas. Mas todas com um nítido traço de força, de tomar para si o seu destino”, observa a atriz protagonista.

Mesmo diante dessa miríade de depoimentos, o espectador não terá a impressão de assistir a um manifesto de pendor feminista. O esteio da obra continua a ser a história de Medeia – com os mesmos personagens e percalços que conhecemos. Apenas vista sob nova perspectiva. Ela não será condenada pelo povo de Corinto, mas por Acamante, conselheiro do rei que tem interesse em desacreditá-la.

Outro aspecto da personagem-título destacado pela montagem é sua condição de estrangeira. “Existe hoje uma exacerbação da fobia à diferença. Populações que precisam sair de seus lugares de origem para garantir sua sobrevivência. O objetivo, ao visitar essa figura da antiguidade, era falar de hoje, de questões que nos mobilizam como homens e mulheres deste tempo.”

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Para que o público acompanhe a essa saga, não deverá sentar-se em uma plateia, mas percorrer o espaço atrás dos atores e das múltiplas cenas. Vê um banquete no palácio real. Aperta-se em uma pequena gruta. Depois, sente a areia afundar sob os pés, como se estivesse no deserto. São incontáveis cenários e figurinos. Além de dezenas de cheiros diferentes, que acompanham cada um desses ambientes. Como se a não linearidade do texto surgisse materializada.

"O espetáculo deve ser uma experiência, não algo a ser meramente assistido. A intenção é que ele afete o público pelos sentidos, e não apenas pela via racional do discurso”, pontua Tânia sobre o trabalho do grupo. Em suas criações anteriores, eles já priorizavam a potência ritualística das encenações. Um exemplo é Viúvas, Performance sobre a Ausência (2011), espetáculo que, para revisitar as ditaduras latinas, propunha uma viagem de barco pelo Rio Guaíba, seguida de uma visita a uma pequena ilha.

PRESTE ATENÇÃO

1. Nos cenários. A cada nova cena, o público movimenta-se e chega a novos ambientes, que recriam desertos, grutas e palácios2.Nos figurinos, que foram criados pelos próprios integrantes do grupo e propõem uma leitura atemporal para os personagens 3. Nas diversas figuras históricas que são evocadas pela montagem, mulheres de diversas nacionalidades que trazem um depoimento de suas dificuldades

QUEM ÉÓi Nóis Aqui Traveizcompanhia teatral Aos 35 anos, é um dos mais importantes grupos do Sul do País. Priorizam espetáculos com caráter ritualístico e buscam envolvimento do público. Já criaram obras como O Amargo Santo da Purificação e Kassandra in Process.

MEDEIA VOZESTeatro Vento Forte. R. Brigadeiro Haroldo Veloso, 150. 5ª a dom. (e de 15 a 20/10), às 20 h. Grátis – senhas a partir das 19h30

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