McCoy narra desencanto com a América

Em Mortalha Não Tem Bolso, o autor de A Noite dos Desesperados enfoca o momento em que a Grande Depressão revela os limites dos ideais fundadores dos EUA

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Por Agencia Estado
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São os diálogos que movem Mortalha Não Tem Bolso, do escritor e jornalista Horace McCoy (1897-1955), autor também de Noite dos Desesperados. Num deles, o protagonista da obra, Mike Dolan, logo depois de ter sua revista "confiscada" das bancas de jornais, por trazer uma denúncia contra uma importante figura da pequena cidade, reclama: "Ele não pode fazer isso! (...) Estamos nos Estados Unidos da América!" Não é o começo da decepção de Dolan com a realidade do país naqueles anos 30, quando os americanos começavam a esquecer a depressão econômica e se preparavam para entrar firmes na Segunda Guerra Mundial. Mas também não será o fim. Horace McCoy, neste romance escrito em 1937, defende que, independentemente do lado que os Estados Unidos haviam escolhido no conflito que se anunciava, o país estava cheio de Hitlers e Mussolinis. No início do livro, Mike Dolan é um editor de esportes. Não consegue publicar uma denúncia contra um resultado arranjado, é demitido do jornal em que trabalha e resolve lançar uma revista própria, a Cosmopolite, com a história. É apenas o primeiro mergulho na corrupção da pequena cidade de Colton. Em seguida, seu alvo é um médico que faz abortos e que provocou a morte de algumas pacientes, mas que tem um irmão bastante poderoso. É nesse momento que os exemplares do seu periódico são "apreendidos". Mas a violência mais radical, mais fascista em sentido estrito, que encontra está relacionada a um grupo denominado Os Cruzados, que lutam pelos "verdadeiros americanos" (ou seja, contra os negros) e por sua duvidosa moral. Um dos empregos de McCoy foi o de editor de esportes e repórter. Também foi fundador de um teatro de bolso - como Mike Dolan, o jornalista combativo e corajoso de Mortalha Não Tem Bolso. Outra profissão que "abraçou" foi a de leão-de-chácara em concursos de dança, como os descritos em A Noite dos Desesperados. Assim, é tentador ver nessas histórias a sua própria história. McCoy, dessa forma, apresenta-se como um escritor tentando conversar com o seu país, tentando apontar seus mais graves defeitos: o show dos horrores nas maratonas de dança ("finalmente" superados pelos shows de realidade das televisões de todo o mundo na virada do ano 2000) e a violência do poder contra os princípios de igualdade, liberdade e fraternidade. O slogan da revista de Dolan é "A Verdade, toda a Verdade e nada mais do que a Verdade". É bastante pretensioso, especialmente pelo uso das letras maiúsculas, mas há um personagem no livro que talvez seja o verdadeiro alter ego de McCoy neste momento: um amigo ligado ao movimento comunista, que procura mostrar o alcance limitado e ao mesmo tempo perigoso do trabalho do jornalista. Por mais que provoque e que disseque a realidade, o jornalismo não faz mais do que arranhar a verdade que o próprio Dolan parece ter entendido: de que, afinal, estamos nos Estados Unidos da América - e que o país está cheio de Hitlers e Mussolinis. Sem resposta - Nesse sentido, o verdadeiro diálogo da obra não se realiza: o diálogo do autor com seu país, os Estados Unidos que McCoy parece querer corrigir com medidas paliativas - denunciando os poderosos (que participam de um assassínio durante uma reunião dos Cruzados e que são apontados a partir das placas de seus carros), criando um teatro de bolso, unindo-se a quem começava a ser escanteado na política e que, nos anos que se seguiriam à Segunda Guerra, seria definitivamente eliminado pelo machartismo. McCoy mostra seu desespero com o que vive e com o que imagina que os Estados Unidos viverão. Não há saída à vista e, talvez por isso, a sensação que a leitura de Mortalha Não Tem Bolso deixa é a de incompletude: se os diálogos movem o livro, quase todas as suas falas não têm respostas civilizadas justamente de quem deveria tê-las ouvido mais atentamente. Serviço - Mortalha Não Tem Bolso (Ed. Sá, 221 págs., R$ 32,90). Romance de Horace McCoy.

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