Maysa, da cantora sensível à mulher transgressora

Chega às livrarias a biografia Só numa Multidão de Amores, do jornalista Lira Neto

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Por Agencia Estado
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O mundo caiu para Maysa no dia 22 de janeiro de 1977. Cantora com uma voz indiscutivelmente singular (meio rouca, meio aveludada), estrela que ostentava uma vida tumultuada e explosiva, ela dirigia sua Brasília azul a toda velocidade no final daquela tarde de sábado quando, ao percorrer a ponte Rio-Niterói em direção a Maricá, perdeu o controle do carro ao tentar desviar de outro veículo e bateu em um cabo de proteção. Em poucos minutos, seu turbulento, apaixonado, transgressor e por vezes insano coração parou de bater. Ela estava chegando aos 40 anos e ocupava uma posição única no cenário artístico nacional - "deusa das canções de dor-de-cotovelo", "rainha da música de fossa", "Edith Piaf dos Trópicos", a cantora e compositora Maysa era não apenas um ícone da boemia, mas também uma cronista da vida noturna, especialmente quando cantava a melancolia em versos seus ou de Dolores Duran, Antonio Maria, Vinicius de Moraes, Jacques Brel, Tom Jobim. "Maysa tinha consciência de que a causa de seu êxito estrondoso como artista residia também na imagem pública que construíra como musa imbatível - e sofisticada - do desencanto", afirma o jornalista Lira Neto, autor de Só numa Multidão de Amores, biografia que a editora Globo começa a enviar nesta quinta, 19, para as livrarias. Amores e conflitos Trata-se de um trabalho de fôlego: depois de dois anos de pesquisa, Lira reuniu uma coleção de fotos raras e inéditas, histórias desconhecidas e fatos elucidados da trajetória de uma das mais controversas cantoras da MPB. Com isso, percorreu todos os traumas de uma vida marcada por amores, viagens, conflitos com a mídia, tentativas de suicídio, crises de alcoolismo e internações em clínicas para desintoxicação. Do convívio com o pai boêmio e hedonista ao casamento com o magnata André Matarazzo (que impunha à mulher o recato das tradições familiares), o jornalista esmiuçou, com carinho e determinação, a existência da mulher que tanto se identificava com a música romântica como abraçava as novidades estéticas trazidas pela bossa nova. A música O Barquinho, aliás, de Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, símbolo do movimento, foi primeiro gravada por Maysa e não por Pery Ribeiro, como reza a lenda. Lira também revela histórias inéditas, tiradas dos diários que a cantora escreveu dos 15 anos até meses antes da morte. Momentos por vezes, sufocantes, que mostram aspectos sombrios de sua personalidade, como se percebe na seguinte anotação: "Há gritos incríveis dentro de mim, que me povoam da mais imensa solidão." Mulher altiva, bela, com olhos que lembravam "dois oceanos não pacíficos", no verso de Manuel Bandeira, Maysa deixou uma marca profunda na MPB com sua personalidade, mais complexa do que sugere sua imagem pública. Uma vida que transformou a angústia em sucesso profissional. Entrevista com Lira Neto Estado - Como se interessou por Maysa? Lira Neto - Sempre me interessei por personagens intensos, contraditórios, que não tiveram existências em linha reta. Maysa é um caso assim. Sua vida turbulenta, recheada de altos e baixos, permeada por zonas de luz e de sombra, estava a pedir uma biografia que a revelasse por inteiro. Além de ser uma artista fabulosa, dona de uma sensibilidade e de um talento incomuns, ela viveu sob o signo da transgressão e da ousadia. Foi uma artista que conseguiu, como poucos, unir a vida artística e o cotidiano em uma única dimensão. Qual foi sua principal dificuldade? Ao contrário dos meus livros anteriores, tive a meu dispor a extrema generosidade da família, que me confiou os "baús" deixados por Maysa. Isso incluiu os diários íntimos da cantora - escritos por ela desde os 15 anos até o último ano de sua vida - e uma montanha de recortes de jornais e revistas, do Brasil e do exterior. Ao fim, cataloguei e consultei cerca de 100 mil documentos. Com base nesse material, parti para a fase de entrevistas. A maior dificuldade, sem dúvida, foi reconstituir os muitos anos em que ela viveu fora do Brasil. Mas com base nos diários, nas matérias de jornal e nas entrevistas feitas na Espanha, Argentina e Estados Unidos, foi possível mapear ano a ano, mês a mês, dia a dia, os passos de Maysa lá fora. E o que mais te surpreendeu? Neto - A primeira boa e grande surpresa foi perceber o cuidado que Maysa teve em deixar registrado, por escrito, nos diários, seus sentimentos e emoções. Para um biógrafo, é um tesouro. A preocupação que teve em preservar todo o material de imprensa a seu respeito - não só as matérias positivas, mas também as notas negativas - também foi fundamental. Maysa era transparente e honesta consigo mesmo. Ela nunca gostaria que sua biografia fosse escrita em tons pastel ou em cor-de-rosa. Esta certeza norteou meu livro. A própria Maysa fazia questão de inventar lendas. O que ela escrevia nos diários era confiável? Em seus diários, ela abria o coração e escrevia sem censuras. Mas, mesmo aí, não pude baixar a guarda e tomar como verdade o que estava escrito pelo próprio punho da biografada. Foi preciso, mesmo nesses casos, ouvir pessoas, cotejar com outros documentos, averiguar informações. O livro é o cruzamento desses três olhares: o olhar de Maysa sobre si própria, o olhar da mídia sobre a cantora rebelde e melancólica e, por fim, o olhar de quem conviveu de perto com ela. Fiz quase 200 entrevistas, com mais de meia centena de pessoas. Maysa se apaixonava perdidamente. Maysa viveu com intensidade. Portanto, quando amou, amou intensamente. Mas é curioso perceber que ela parece ter passado a vida inteira em busca de um amor total, sem nunca verdadeiramente vir a conhecê-lo. Houve pessoas que marcaram profundamente sua vida, mas nenhum dos muitos amores que teve parece ter satisfeito toda a sua imensa fome e sua enorme sede de amar. Maysa era um furacão em forma de mulher, mas sempre foi também uma alma imersa em extrema carência. E o caso com Roberto Carlos? Para os amigos mais íntimos, Maysa dizia que teve realmente, um rápido affair com Roberto. Contudo, nos diários, não deixou uma única linha a esse respeito. E quando outras pessoas lhe indagavam a respeito, não desmentia nem confirmava. Oferecia à curiosidade alheia o benefício da dúvida. Você disse que Maysa era duas pessoas: a cantora das músicas melancólicas e a mulher irreverente. De fato, ao lado da Maysa angustiada e noturna, havia também uma Maysa solar, chegada a uma irresistível molecagem. Costumo dizer que poucos artistas brasileiros tiveram a vida tão dolorosamente devassada pela imprensa quanto Maysa; ao mesmo tempo em que quase nenhum deles soube tirar tanto proveito da exposição na mídia quanto ela. Maysa tinha a exata consciência de que seu êxito como artista, além de sua voz única e marcante, decorria também de seu comportamento controvertido e pouco afeito às convenções. Aos poucos, porém, percebeu que acabou se tornando refém do próprio personagem que criara para si. "Acabei me transformando exatamente naquilo que queriam que eu fosse: uma mulher mal-amada", escreveu, certa vez, em seu diário. A dependência alcoólica e química foi seu principal problema? O livro mostra como a dependência alcoólica significou um terrível drama ao longo de toda a sua vida. Tomei o cuidado de não "glamourizar" os pileques de Maysa, ao mesmo tempo que procurei fugir de qualquer espécie de condenação moral a esse respeito. Maysa assumia-se como uma pessoa doente. Por várias vezes, tentou largar a bebida, mas não conseguiu. Perto do fim da vida, Maysa recorreu a um recurso extremo, introduzindo uma pastilha de Antabuse em seu corpo, por baixo da pele da pélvis. O Antabuse é uma substância química que, em certos casos, pode provocar efeitos imprevisíveis - às vezes até a morte - ao paciente que ousar misturá-lo com o álcool. Quando pôs a pastilha no corpo, Maysa escreveu em seu diário: "Pus o meu futuro dentro de mim. A pastilha de Antabuse, no meu ventre, é como um filho ou uma filha. Uma nova Maysa nascerá em mim." Menos de um ano depois, infelizmente, ela estava morta. E a dificuldade com o peso? Maysa tinha a incômoda capacidade de ganhar quilos da noite para o dia. Tratava-se de uma característica familiar, mas que foi agravada pela ingestão excessiva de bebidas alcoólicas. Chegou a pesar perto de 100 quilos. Para emagrecer, recorreu a anfetaminas que, com o Antabuse, representaram um verdadeiro coquetel químico em seu organismo. Os comprimidos de Minifage, um moderador de apetite, combinado com os de Lasix, um diurético que usava para perder líquidos e, por conseqüência, peso, provocavam efeitos colaterais violentos. Ela tinha crises de delírios, insônias e embotamentos mentais. É possível apontar herdeiras? Nesta época impregnada pelo bom-mocismo e pela construção de imagens politicamente corretas no meio artístico, é difícil encontrar semelhanças em relação a Maysa. Viver intensamente, sem dúvida, foi o grande legado que ela nos deixou "Só digo o que penso,/ só faço o que gosto/ e aquilo que creio" ela cantou, na música "Resposta", de sua autoria. Difícil vislumbrar, hoje em dia, alguém cantando isso com a mesma emoção e honestidade.

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