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Luzes da cidade

Mau e banal

Há uma grande diferença entre examinar o Eichmann medíocre e o neonazista comum de 2017

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Por Lúcia Guimarães
Atualização:

Como representar o mal? No longo feriado de Ação de Graças, quando os americanos se entopem de peru assado e manifestam gratidão, esta questão provocou reações passionais, mais de meio século depois de a filósofa Hannah Arendt cunhar a expressão “banalidade do mal.” Uma reportagem no mais importante jornal americano foi o estopim da discórdia. Publicada com destaque na edição de papel no domingo, sob o título No Coração da América, a Voz do Ódio Vizinho, apresentou um perfil de um nacionalista branco vivendo numa cidadezinha de Ohio.

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Tony Hovater tem 25 anos, pensou em se candidatar a vereador, mas não pode ser comparado a Adolf Eichmann, o oficial da Gestapo que organizou para Adolf Hitler a implementação do extermínio de judeus e foi entrevistado por Arendt durante seu julgamento em Jerusalém. Mas Hovater parece compartilhar com Eichmann o respeito por Hitler, que ele absolve, questionado pelo repórter Richard Fausset, como “um cara que realmente acreditava na sua causa e fez o que achava certo.”

A indignação com a reportagem explodiu na rede social e colegas jornalistas, como esta colunista, lideraram a ofensiva. Há grande diferença entre examinar o Eichmann medíocre e cumpridor de ordens e mostrar o neonazista de 2017 como o homem comum, que tem mulher, emprego, gatos e uma vida semelhante à sua ou à minha. Pensei que já tínhamos superado o mito de que seres humanos capazes de monstruosidades são verdes ou têm três cabeças. Como não há supermercados e lojas especializados no consumidor nazista, é claro que o personagem em questão é visto enchendo seu carrinho de compras e usou a rede Target para sua lista de presentes de casamento, como descreve o jornal.

Ser jornalista é ter estômago para encontrar e expor o mal. É também respeitar a inteligência do leitor e não tentar lhe dirigir o pensamento. É importante jogar luz sobre personagens que nos envergonham e nos fazem questionar nossa humanidade. O problema é que a reportagem foi recebida como uma plataforma normalizadora de uma aberração, sem colocar o nazismo de 2017 em contexto.

O próprio Richard Fosset, que entrevistou Hovater, revelou, num artigo separado, no website do Times, o dilema que precedeu a publicação. Seu editor não estava satisfeito com a primeira versão e ele fez mais uma entrevista como o simpatizante nazista de Ohio para tentar entender sua jornada de uma cordial vida de classe média para o extremismo. As respostas, apesar do candor do entrevistado, não preencheram o que o jornalista admite como “o buraco no coração” da narrativa. O que, a meu ver, seria motivo para não publicar a versão que provocou a controvérsia no jornal descrito como o principal registro histórico da imprensa do país.

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Com a impulsividade e a gritaria que marca o discurso público contemporâneo, um reflexo comum é denunciar censura quando se sugere qualquer filtro sobre a informação. Mas você só está lendo esta coluna porque ela passou por pelo menos dois editores e, embora artigos de opinião não sejam reescritos, cabe, como deve ser, a este jornal liberar sua publicação. A internet e as redes sociais retiraram a edição da informação pública e sabemos o quanto o recrutamento para o extremismo, seja o do Estado Islâmico ou dos neonazistas, foi ampliado e facilitado na última década. Num momento em que um adolescente em Goiás revela ter se inspirado em dois massacres famosos em escolas para matar seus colegas, o papel do jornalista para encontrar e descrever o mal não é do inocente estenógrafo. No debate travado via Twitter sobre o “nazista normal” um leitor fez a sugestão: assim como há repórteres especializados em cobrir o terrorismo longe de casa, seria bom nos prepararmos melhor para cobrir o mal que mora ao lado.

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