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Coluna quinzenal do jornalista e escritor Sérgio Augusto sobre literatura

Opinião|Matéria de memória

Atualização:

Quase mensalmente eles se reuniam num restaurante de Ipanema chamado Arlecchino. Ocupavam uma cativa mesa redonda do segundo andar, onde se aboletavam sem aperto e protegidos de ouvidos intrusos. Eram seis. Ou melhor, éramos seis, pois eu também frequentava o que carinhosamente apelidamos de Jantar dos Canalhas. Todos basicamente jornalistas, colegas e ex-colegas de redação: Carlos Heitor Cony, Janio de Freitas, João Máximo, João Luiz de Albuquerque, Ruy Castro, os demais cinco. Os jantares há muito deixaram de acontecer, mas os comensais, sem exceção, continuam vivos e na ativa - e é isso que importa.  Cony, decano da confraria, chegou aos 90 no início da semana. Não deu festa, tomou chá de sumiço, como convém ao mais longevo dos nossos cronistas. Ruy Castro, o caçula da turma, dedicara-lhe na véspera uma pequena homenagem em sua coluna, enaltecendo o jeito Cony de ser “cético, sardônico e independente”. Assino embaixo.  Entramos quase ao mesmo tempo para o Correio da Manhã. Ele vindo da redação da Rádio Jornal do Brasil, já trintão; eu, um catecúmeno pouco mais que adolescente metido a crítico de cinema crismado por Ely Azeredo na Tribuna da Imprensa, em cujos domínios, aliás, Cony publicara seu primeiro artigo sobre cinema, uns quatro anos antes. Não tinha o semblante heideggeriano que há tempos ostenta; mais parecia um latin lover, prestes a tirar da boca o sartriano cachimbo e cantar Muñequita Linda. Já publicara quatro romances, o quinto (Matéria de Memória) estava para sair.  Trabalhamos juntos quatro anos, ele se multiplicando em articulista, cronista (alternando com Otávio de Faria) e editorialista. Simpatizei de cara com seu jeito folgazão, sua irreverência, seu temperamento anárquico. Obrigado a passar sempre pela minha mesa, quase colada à sala dos editorialistas, dito Petit Trianon (onde também pontificavam Otto Maria Carpeaux, Antonio Callado, Antonio Houaiss, Edmundo Moniz e José Lino Grünewald), não negava conversa sobre o que desse e viesse. Aprendi um bocado com ele. “Sergiusque Tandem.” Até hoje só me saúda com esse ciceroniano trocadilho, sem qualquer intenção de me ofender.  Seu trabalho visível eram, então, as crônicas da coluna Da Arte de Falar Mal, que saía às quartas, sextas e domingos, na primeira página do Segundo Caderno. Sua maledicência light era um refrigério com enorme índice de leitura. Falava de literatura (adorava os italianos, em especial Cesare Pavese e Alberto Moravia, creio que nessa ordem), de si mesmo, de sua formação religiosa (foi seminarista, mas tornou-se agnóstico na tarde de 16 de julho de 1950, quando o Brasil perdeu a Copa para os uruguaios no Maracanã), dos amigos, de filmes, de música.  Se coubesse a mim ser o DJ da festa de aniversário que não houve, misturaria The Continental com Parlami d’Amore, Mariù, Guarda Come Dondolo, Lolita Ya, Ya e nem precisaria servir-lhe um afogato (sorvete de chocolate afogado numa xícara de expresso) após o jantar para fazê-lo feliz. Embalados por aquelas abobrinhas musicais, as duas últimas consagradas na tela por Dino Risi e Stanley Kubrick, falaríamos quase que a noite inteira de cinema.  Brincavam que na redação do Correio havia 350 críticos de cinema. Pelo menos nove havia, três efetivos, o restante distribuído por outras editorias. Só no Petit Trianon havia dois: Cony e Zé Lino. E por serem tantos, criou-se no Segundo Caderno um Conselho de Cinema chupado da revista Cahiers du Cinéma. Toda semana, o filme de maior expressão em cartaz era comentado por meia dúzia dos cinéfilos da casa. Dos mais assíduos na página, Cony tinha gosto até certo convencional. Venerava Chaplin (escreveu um estudo biográfico sobre ele, reeditado há pouco tempo pela Nova Fronteira) e O Gabinete do Dr. Caligari, admirava Bergman, Fellini, Antonioni, Visconti, implicava com Hitchcock (“brilhante, mas precisa de um copy desk”), Frank Capra (“muitas de suas obras-primas envelheceram dramaticamente”) e O Processo dirigido por Welles (“literário e retórico”).  Em 1964, Hugo Carvana cismou de adaptar ao cinema o recém-lançado Antes o Verão e me convidou para assumir a empreitada. Nunca me imaginara dirigindo um filme, tirei o corpo fora; Gerson Tavares se incumbiria da tarefa quatro anos depois. Foi por intermédio de Cony que Walter Lima Jr. aproximou-se de Betinha, filha de José Lins do Rego, e adquiriu os direitos de Menino de Engenho, por ele filmado em 1965, um ano antes de um documentário sobre Carpeaux, O Velho e o Novo, de Mauricio Gomes Leite (outro dos 350 críticos do Correio), em cuja equipe Cony atuou como motorista do Simca Chambord utilizado nas filmagens, por sinal de sua propriedade. No único longa de Mauricio, A Vida Provisória, realizado dois anos depois, Cony faria o papel de um agente dos órgãos de segurança, casting irônico que permitiu ao jornalista escritor encarnar sua mais frequente nêmesis durante a ditadura militar. A quartelada de 1964 pegou Cony convalescendo de uma apendicectomia e suas complicações. O Correio pressionara pela queda de Jango, os milicos tomaram o poder, e no primeiro dia da “redentora” (debochado apelido conferido ao novo regime por Stanislaw Ponte Preta), Cony deu um passeio no quarteirão onde morava, em Copacabana. No dia seguinte, de volta ao front jornalístico, exercitou-se na arte de falar mal do golpe e da pantomima bélica dos recrutas com os quais cruzara no Posto 6. Seguiram-se mais três crônicas sobre os primeiros absurdos da junta fardada, a quarta já antecipava a nova rubrica: O Ato e o Fato, que, a partir da assinatura do Ato Institucional de 9 de abril, substituiu para sempre A Arte de Falar Mal. O Ato formalizando as abomináveis intenções do novo governo foi o golpe de misericórdia na solidariedade do Correio e na maledicência light do Cony, que se transformou no mais ferrenho e mordaz crítico da nascente ditadura e no primeiro herói da resistência. Antes de concluir com o clichê “e o resto é história”, um acréscimo: Cony sempre repudiou a fama de herói. Não se sentia um épico El Cid, mas um ridículo Quixote. “Meus artigos nunca lutaram por nenhum ideal, mas em causa própria”, disse-o várias vezes. A causa de sua indignação, a mesma de milhares de brasileiros, que aos poucos viraram milhões.

Opinião por Sérgio Augusto
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