PUBLICIDADE

EXCLUSIVO PARA ASSINANTES
Foto do(a) coluna

Coluna semanal do historiador Leandro Karnal, com crônicas e textos sobre ética, religião, comportamento e atualidades

Opinião|Mas nunca ouvi você falar de...

Hoje, se você quiser ser chamado de equilibrado, deve começar condenando o fratricídio de Caim

Atualização:

Tenho repetidas experiências nas mídias sociais: publico uma análise da guerra da Ucrânia e brotam cobranças: “...mas nunca ouvi você falar da guerra civil na Síria”. Sim, já falei, mais de uma vez. E, se por cuidado com equidades euro-asiáticas cito Damasco quando penso em Kiev, chegam outros petardos: e o Iêmen? E o Sudão do Sul?  O mal virou constante. Não gosta de algo no Executivo brasileiro? É obrigatório condenar o governo da Coreia do Norte no mesmo parágrafo. Identificou um massacre ligado a um governo socialista? Rápido, ao menos outro massacre capitalista em sequência. Não existe nada mais em si. Hoje só há pares polares, duplas opostas, antípodas – como se dizia antigamente. É um jogo cansativo. Hoje, se você quiser ser chamado de equilibrado, deve começar condenando o fratricídio de Caim. Depois, claro, relembrar a violência furiosa dos irmãos de José do Egito. Jericó caiu? Lembre-se do sofrimento dos hebreus sob Josué e o sofrimento dos cidadãos da cidade com muralhas destruídas. Nunca fale das crianças que morrem de diarreia no Brasil sem citar o massacre dos inocentes sob Herodes. Escreveu oito linhas sobre violências contra judeus? Não se esqueça de medir, na régua, o mesmo número de afirmações para deplorar o massacre de palestinos.

O Estado de S.Paulo - 02/02/19453 clique aqui para ver a página Foto: Acervo/Estadão

Belgas católicos mataram muita gente no Congo do século 19? Ah! O que os protestantes fizeram no 17? E os ateus da URSS? Não me venha com massacres em comunidades do Rio de Janeiro sem relembrar os destinos trágicos dos Taipings e dos Boxers na China.  Parece que perdemos o fato individual e momentâneo. Seria sempre necessário voltar ao Big Bang para falar de um crime na esquina? Sim, todos os mortos recentes da Ucrânia são numericamente inferiores a uma tarde intensa na Batalha de Stalingrado, em 1943. Mao Zedong matou mais gente do que todo o esforço de violência nos morros e comunidades do Rio.  No entanto, dizer que a ditadura argentina matou muito mais do que a brasileira consolaria Clarice Herzog? Ah! Você sofre com esta cólica renal, mas eu tive três partos naturais... Precisamos sair da pura polaridade para ter alguma clareza. A perspectiva é sempre necessária. As cobranças como descrevi com pena de ironia existem muito mais para desqualificar o argumento atual do que para resgatar a história. Somos violentos desde a época da nossa ancestral Lucy, na África. Porém, se Gengis Khan matou muita gente, isso não diminui a violência hoje. Eu já fui assaltado com violência, mesmo sabendo que Vlad empalava turcos no fim da Idade Média. Minha esperança é pensar e nunca contabilizar, apenas.

Opinião por Leandro Karnal
Tudo Sobre
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.