Mas maestro, qual é a música?

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

Seguindo instruções do maestro Yan Pascal Tortelier, um trompetista inseria as primeiras notas da Marselhesa na Fantasia sobre o Hino Nacional Brasileiro, composta por André Mehmari para o concerto de abertura da temporada 2010 da Osesp. A ideia do regente não fora aceita pelo compositor - mas Tortelier insistiu. E fez a alteração que desejava. O incidente passou despercebido, mas é interessante porque questiona um dos dogmas da vida musical: o intérprete pode mexer na obra do compositor sem autorização? À primeira vista, a resposta é não. Mas já foi um sonoro "sim". Na música produzida durante o longo arco histórico entre a Idade Média e o século 18, escreviam só o essencial, e deixavam para os instrumentistas e cantores a tarefa de preencher lacunas, improvisar acompanhamentos, imaginar ornamentos. Não havia a noção de obra. A música era funcional. Afinal, tocava-se música nova, isto é, escrita para aquele dia. Por que ninguém reclamava? Porque não existia o conceito de obra, algo que só começou a circular a partir do célebre concerto em que Mendelssohn regeu a Paixão Segundo São Mateus em 11 de março de 1829, em Berlim. Ali nasceu o mito de Bach como "o pai da música". Sem cerimônia, Mendelssohn aplicou à partitura uma sessão de corte e costura. Deformou o manuscrito original. Cortou árias, recitativos, coros. Mas foi o primeiro grande compositor a olhar para o passado a fim de instituir uma listagem, um cânone, das obras-primas do passado. Além de resgatar com justiça a obra de Bach, Mendelssohn iniciava na vida musical algo até então inédito: o culto ao passado. Dali em diante, as obras musicais antigas adquiriram o status de textos sagrados. Alguns números são reveladores da mudança de atitude na vida musical. Quando assumiu a direção da Orquestra do Gewandhaus, nos anos 1830, Mendelssohn encontrou a seguinte proporção no repertório: 85% das obras tocadas nos concertos tinham sido escritas por compositores vivos, 15% eram de autores já mortos. A força do movimento de resgate do passado foi tão forte que sessenta anos depois, nos anos 1890, a orquestra invertera a relação.A interpretação musical engessou-se de tal modo nesta fidelidade canina ao texto da obra musical no último meio século que hoje a uniformização alcança um nível quase insuportável. Todo mundo toca igual.Mas ainda bem que sempre houve rebeldes. Como Ferruccio Busoni, por exemplo, que em 1902 respondeu assim a um crítico que o esculhambou por uma transcrição: "Você parte de uma premissa falsa ao pensar que eu quis modernizar estas obras. Ao contrário, ao varrer delas a poeira da tradição, tento restaurar sua juventude."Três CDs lançados no mercado internacional documentam situações-limite de atrevidos e inteligentes olhares criativos sobre a obra musical. Dois deles têm como eixo Beethoven; o terceiro concentra-se em Brahms.Não se sabe se Mahler ouviu o comentário de Busoni, feito no ano em que ele tomava muitas pauladas da crítica vienense por ter deformado a Nona de Beethoven. Mas com certeza teria gostado de ouvir o argumento de Busoni. Pois Mahler quis justamente fazer isso com a Nona. Sua radical revisão na partitura de Beethoven aparece este mês pela primeira vez numa gravação ao vivo da orquestra austríaca Tonkünstler, regida por Kristjan Järvi.Ele foi ao ponto para justificar a mão grande na partitura: "Na época dele, a orquestra inteira não era tão grande quanto uma seção de cordas atual. E se você não der aos demais instrumentos a correta proporção com as cordas, a música não soa bem." Mahler multiplicou todas as madeiras, acrescentou um segundo timpanista, cortou repetições, alterou fraseados e articulações, acrescentou trompas, piccolo, clarineta em mi bemol - mexeu em praticamente tudo. Além do prazer de ouvir esta versão sinfonicamente vitaminada da Nona, é preciso levar em conta que o próprio Beethoven a adoraria. Ele não teve nenhum pudor, também, em transformar seu 4.º concerto para piano e orquestra em um sexteto para piano solista e quarteto de cordas acrescido de uma viola, a pedido de seu mecenas, o príncipe Lobkowitz, que desejava tocá-lo com amigos em seu palácio. O resultado surge só agora em primeira gravação mundial pelo selo Lontano, com a pianista lituana Müza Rubackyté, acompanhada pelo Shangai String Quartet e o viola Girdutis Jakaitis. Uma autêntica revelação.O terceiro olhar criativo foi um dos mais ousados deste início de século 21. O pianista croata Dejan Lazic, 33 anos, naturalizado austríaco, capturou a atenção internacional ao gravar um CD que está sendo lançado no mercado internacional pelo selo holandês Channel Classics com um "novo" concerto para piano e orquestra de Brahms. Na verdade, Lazic, que também é compositor, fez uma originalíssima transcrição do bem conhecido concerto para violino. A gravação, feita ao vivo com a Orquestra de Atlanta, nos EUA, e Robert Spano na regência, é estupenda. Ele conseguiu realizar uma transcrição pianisticamente idiomática; isto é, o concerto parece mesmo ter sido escrito para piano. Lazic vem a São Paulo para tocar com a Osesp, de 27 a 30 de maio. Mas não esfregue as mãos. Ele vem, mas para fazer mais do mesmo, isto é, tocar o segundo concerto de Chopin.

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