Martín Kohan fala sobre 'Segundos Fora', seu novo livro

Escritor argentino fala sobre como surgiu a ideia de seu romance e sobre a produção literária de seu país

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Por Antonio Gonçalves Filho
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Numa pequena cidade da Patagônia argentina, os jornalistas Verani e Ledesma disputam para ver quem vai assinar a matéria especial que comemora os 50 anos do jornal em que trabalham. Verani, editor de esportes, quer relembrar uma luta de boxe histórica que marcou a derrota do argentino Luis Ángel Firpo para o norte-americano Jack Dempsey, em Nova York, no mês de setembro de 1923. Dempsey foi jogado para fora do ringue e ficou estendido no chão por 17 segundos sem que o juiz se dispusesse a registrá-los. Resultado: Dempsey voltou ao ringue e foi consagrado campeão, apesar de ter sido nocauteado, provocando uma das maiores humilhações ao povo argentino. Sobre essa luta, Kohan escreveu o livro Segundos Fora (Companhia das Letras, tradução de Heloisa Jahn, 256 págs., R$ 39,50). Nele, a luta assume uma dimensão metafórica, segundo o argentino Martín Kohan, que falou com exclusividade sobre Segundos Fora ao Sabático.

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Qual foi o impulso inicial de seu romance Segundos Fora?

Um romance responde, em meu caso, a ideias e impulsos diversos. Neste caso, sempre vi uma espécie de altíssima concentração épica e significativa nos 17 segundos que Jack Dempsey passou fora do ringue, quando Firpo conseguiu nocauteá-lo naquela disputa de 1923. A façanha, a vitória aparentemente assegurada, a ressurreição, a ilegalidade, a possibilidade da derrota, tudo se passou em menos de 20 segundos, quase como se fosse um sonho. Sempre pensei que teria de ter a mesma concentração narrativa para contar essa imensa história, condensada em apenas 17 segundos, a razão de um segundo por capítulo. Por outro lado, me pareceu interessante pensar esse episódio como sinal de um possível imaginário argentino, que o esporte tantas vezes representa: a certeza de vencer e preponderar, logo a queda e derrotas inesperadas, junto à suspeita de que algo nebuloso e conspiratório havia ou deveria haver no meio disso tudo. Mas não pude projetar totalmente o romance até que se agregou a ele um elemento: a disputa Firpo-Dempsey por um lado, mas também os concertos que Richard Strauss veio a dar em Buenos Aires nesse mesmo ano, que me possibilitou inventar um crime e uma intriga policial passada entre esses dois mundos, o popular, do boxe, e o mundo sofisticado da música clássica.

Partindo de uma descrição detalhada do conto Torito, de Julio Cortázar, e de Segundos Fora, a acadêmica argentina Ana Maria Risco escreveu uma tese para a Universidade Nacional de Tucumán na qual analisa o boxe como tema literário e expressão cultural, detendo-se nos vínculos entre o esporte e o jornalismo. Que relação você tem com o boxe e que pontos de ligação simbólica identifica com o jornalismo?

O boxe significa para mim o que, mantida a distância, Borges encontrava nos duelos de "cuchilleros": a cena paradigmática na qual dois homens se enfrentam mão a mão para se encontrar com seu destino e para se descobrir. Claro que a morte não está no meio nesses casos, mas sim essa cena limpa, despojada, agonística, reveladora - e o jornalismo faz desse um fenômeno moderno, como se vê muito bem em Torito: a decisiva projeção dessa categoria de lutas, de apelo popular, num fenômeno de massas. A disputa Firpo-Dempseu foi filmada, já em 1923. E tudo estava preparado para que um raio de luz fosse projetado num dos primeiros arranha-céus de Buenos Aires. Ou seja, já era esse imaginário moderno ao redor e eu o retomei em "Segundos Afora".

Há um jogo teatral, segundo a tese de Ana Maria Risco, quando a curiosidade do personagem Verani compromete a investigação de um crime por seus colegas de redação no jornal, pois o que aparenta ser uma coisa resulta ser exatamente o oposto. O sentido metafórico é evidente, mas não seria também o retrato de um traço da moral argentina, uma sentença contra a hipocrisia, a busca do reconhecimento?

Os personagens do livro investigam um crime com 50 anos de distância - e esse crime ficou e vai continuar impune. Vale dizer: o que buscam é a verdade e nada além dela, nem mesmo um culpado ou uma punição. Mas, como o romance transcorre nesses dois níveis, o da violência popular e do refinamento artístico, creio que na investigação do crime há também uma indagação sobre como são essas culturas, como se pode pensar nelas. Há outras zonas do mal no romance: um possível abuso sexual, apenas insinuado. E, também, a minha decisão de situar a ação na cidade de Trelew, em 1973, um lugar em que apenas um ano antes a ditadura perpetrou uma execução coletiva e ilegal. São distintos níveis da violência e do delito que aparecem em Segundos Fora.

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A literatura argentina passa por uma excelente fase: Cesar Aira, Rodrigo Fresán, Martín Kohan, Alan Pauls. Como você analisa seus contemporâneos e o contraste entre a literatura latino-americana e espanhola? Você diria que a literatura argentina tem características próprias?

Creio, de fato, que existam características próprias na literatura argentina, entre outros fatores por uma razão linguística: as variações do castelhano de cada um dos países da América Latina. Considero que esta é uma fase muito valiosa, justamente pela sua diversidade e sua riqueza: não há uma tendência ou uma estética dominante ou hegemônica. O interessante é que estamos buscando e provando formas distinitas, variantes distintas.

O papel do acaso em Segundos Fora é maior do que pensamos quando o livro começa. Que importância o acaso tem em sua vida?

Na minha vida? Tento que o acaso ocupe o menor lugar possível em minha vida. Prefiro saber sempre o que é que se vai passar. E prefiro ser quem decide.

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Durante muito tempo você resenhou livros de novos autores como Juan José Becerra e Leopoldo Brizuela. Qual a sua relação com essa literatura e como analisa a relação entre a tradição argentina e o desejo da nova geração de dialogar com autores internacionais? 

Sinto orgulho, como crítico, de ter prestado atenção aos primeiros livros de vários autores que agora ocupam lugares significativos na literatura argentina: Becerra, Brizuela, Gustavo Ferreyra, Carlos Gamerro, vários outros. Aposto numa crítica atenta ao próprio presente e que possa nele intervir. Claro que essa atenção ao presente não implica uma abolição do passado, mas o contrário: o presente está sempre reescrevendo tradições, atualizando tradições. Como cada escritor elege, e de que forma as reelabora, assim entendemos o presente.

Comparando Segundos Fora com outros romances seus, por que elegeu um tema tão diferente dos outros?

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Não escrevo senão motivado pelo desejo, quando uma ideia, ou, em verdade, várias ideias, se articulam como promessa de uma narração possível. E essa promessa desperta em mim um desejo. Isso acontece de modo distinto em cada um dos livros. As relações entre um e outro se recompõem depois, são definidas pelas leituras.

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