Marra desvenda em livro a zona leste de São Paulo

PUBLICIDADE

Por Agencia Estado
Atualização:

O livro de estréia do contista Luis Marra, O Coletivo Aleatório, revela uma cidade de São Paulo razoavelmente conhecida por seus moradores e exibida cotidianamente pela superficial reprodução da realidade que os jornais promovem, mas que ainda é carente de expressões literárias. Marra é médico na zona leste de São Paulo e é neste ambiente que seus personagens nascem, agem e interagem. O título do livro sai de seu último conto, em que um motorista de ônibus é obrigado a desviar-se de seu caminho original. Embalado por Raul Seixas, leva seus passageiros por um passeio "maluco beleza" por São Paulo, "... porque muita vida compromissada em antiga rotina fiel conheceria a contraparte do gozo arriscado do deslize e com certeza brotariam piscadelas de suave malícia introduzidas na surdina de cantos aconchegantes com oferendas de flores e presentes entre véus de fumaça e encontro de corpos...". O pequeno trecho acima serve para ilustrar como Marra tem ritmo e constrói orações fortes e coerentes mesmo quando recorre a formas mais ousadas. Há, contudo, alguns problemas também aí: a metáfora não é original e muito menos, seus desdobramentos. Definitivamente, O Coletivo Aleatório não é o melhor de O Coletivo Aleatório. Marra oscila entre a possibilidade de ousadia e certa ingenuidade na escolha de seus temas. Lição de Democracia, por exemplo, é óbvio demais: a professora mostra quão superficial é a formalidade democrática do voto, e quanto mesmo ela está longe das salas de aula. Não há novidade, muito menos surpresa. Talvez os melhores momentos de Marra estejam mais bem representados no conto Uma Janela do Corpo, que tem um trecho reproduzido abaixo. Nele, um menino de rua percebe a sensação que uma ferida aberta causa, e os lucros (materiais e sentimentais) que pode tirar disso. Lentamente, abre cada vez mais a ferida, criando a tal janela que expõe suas vísceras até o limite da vida. "Ou seja, ele extravasara, decerto pelo lado torto; ou se derramara; ou despencara desde o lado de dentro de si próprio. Ou, até mesmo, ele se auto-escorrera." Há um ponto, no entanto, que une todos os contos: Marra tem plena consciência de que seus personagens não são caricaturas do perigo, da irreflexão e da ignorância. Revela admiração e otimismo em relação a eles e não aceita preconceitos. No ano passado, a edição de Capão Pecado, de Ferréz, inaugurou uma nova literatura ligada à periferia, que talvez merecesse a classificação de literatura hip-hop. É a produção "orgânica" da juventude que vive nesses bairros não-centrais de São Paulo, mas só ela não dá conta de retratar o tal universo. Autores como Marra, distantes, mas conhecedores deste mundo, são mais que desejáveis: são necessários. Quando o livro Presença de Anita (não confundir com a desastrosa minissérie da Globo), de Mário Donato, foi lançado, nos anos 40, Sérgio Milliet escreveu que, não fosse o talento do escritor, não seria tão rigoroso na crítica. O mesmo raciocínio vale para Marra: O Coletivo Aleatório é um livro revelador, mas o autor parece ter condições de ir além - suas pequenas ousadias e seu controle sobre o que escreve exigem que ele arrisque mais em seu próximo livro. O Coletivo Aleatório. Contos de Luis Marra. Editora Hedra (tel. 11 3097-8304). 154 páginas, R$ 19,50.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.