Mário Lago relança diário de sua prisão

Aos 89 anos, ele relança Reminiscências do Sol Quadrado, um diário de sua prisão em 2 de abril de 1964, na ressaca do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart

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Por Agencia Estado
Atualização:

Uma das dificuldades de se escrever sobre Mário Lago é qualificá-lo. Ator, escritor, compositor, jornalista, showman e político são algumas das profissões ligadas à criação artística exercidas por ele com sucesso. Sua biografia se confunde com a própria história do Brasil. Quem ainda duvida, terá certeza disso com o livro Reminiscências do Sol Quadrado, um diário de sua prisão em 2 de abril de 1964, na ressaca do golpe militar que derrubou o presidente João Goulart, que agora está sendo relançado pela editora Cosac & Naify. "Sou incurso em vários artigos do Código Penal", diz. "A vida me levou a essas atividades, apesar de eu ser mais preguiçoso que o Dorival Caymmi", brinca ele, em seu apartamento em Copacabana, onde vive rodeados pelos cinco filhos nove netos e três bisnetos. A mulher, Zeli, companheira de mais de 40 anos, morreu há 4. Hoje em dia, Mário Lago sai pouco de casa, pois a saúde não lhe permite as mil atividades que teve nos últimos 70 anos. "Acrescente também a boemia porque, apesar de comunista, não quis abrir mão de nada", afirma. "Um militante deve levar a vida como as outras pessoas até para poder dialogar com elas." Reminiscências do Sol Quadrado conta uma das muitas vezes em que Lago foi preso por causa dessa militância. O livro foi lançado pela primeira vez em 1964, logo após o ator sair da prisão, quase como um desabafo. Ou um documentário dos primeiros momentos do golpe, em que a esquerda brasileira viu que sua força era menor do que imaginava. É um diário da prisão, da movimentação dos detidos por motivos políticos, sabendo ou não quais eram, mas o autor expõe uma situação-limite com realismo, mas sem amargura. Editor insistente - "A gente tem de amenizar a prisão de qualquer jeito, transformá-la numa coisa mais aceitável", diz ele. "Dei meu testemunho para aquela época e relanço-o agora por insistência do editor, mas não sei qual será sua repercussão nos dias de hoje." Mário Lago sabia que seria preso. Não era a primeira vez que isso acontecia. Comunista deste a juventude, ele e a mulher Zeli estavam sempre entre os primeiros nomes lembrados para servir de exemplo do que acontece com quem se rebela contra uma ordem estabelecida. No entanto, ele deixa claro, em vários momentos do livro, que sofreu bem menos que outras pessoas em situação idêntica. "Não fui torturado nem minha família se desestruturou com a minha prisão. E sei de gente que morreu, se estropiou ou viu a vida se esfacelar." Na verdade, Lago enfrentou problemas para sustentar os cinco filhos, ainda pequenos na época. "Quando fui preso, estava com Cr$ 40,00 no bolso e era tudo que eu tinha", recorda. "O que me salvou foram os vizinhos, maravilhosos, que ajudaram minha família", lembra ele. "Na época, trabalhava na Rádio Nacional, fui demitido e tive que de me virar com dublador ator, o que fosse para sustentar a família e só em 1968 fui para a TV Globo, onde estou até hoje." Talvez daí venha sua versatilidade em várias profissões. Compôs pelo menos quatro clássicos da música popular brasileira, os sambas Amélia e Atire a Primeira Pedra, com Ataulfo Alves; o fox Nada Além e a marchinha de carnaval Aurora, com Roberto Roberti, e pelo menos mais duas centenas de canções. Na Rádio Nacional escreveu de tudo, de noticiários a programas de auditório. Foi ator e autor de teatro nos anos 30 e estreou em televisão na novela O Sheik de Agadir, em 1968. Desde então - até dezembro do ano passado, quando fez o especial Enquanto a Noite não Chega, com Heloísa Mafalda e Flávio Migliaccio -, perdeu a conta dos personagens que viveu na telinha. Novelas preferidas - "Procurei diversificar, imprimir um caráter diferente em cada papel que vivia e fazer minha crítica por meio deles", diz. "Eu me lembro que, numa novela, Assim na Terra como no Céu, eu fazia um banqueiro e sugeri ao autor, o Dias Gomes, aparecer de peruca; ele topou na hora, para mostrar o ridículo do personagem", conta. Entre tantos trabalhos, ele elege três, todos dos anos 70, mas lembrados até hoje. "Minhas novelas preferidas são O Casarão, Dancing Days e Nina, pelas quais ganhei prêmios como melhor ator; hoje não faço mais televisão porque não tem papel para bisavô e para avô eu já passei da idade." O que não significa que esteja parado. Ele está alinhavando suas memórias da infância, molecagens que fez nas primeiras décadas do século passado, na Rua do Rezende, no centro da cidade, onde nasceu e passou a infância. "Comecei aos sete meses, quando engoli um guizo", comenta. Na época, a Lapa já era lugar de boemia e Mário Lago, ainda adolescente, passou a freqüentá-la a partir dos anos 20, ao lado de Noel Rosa, Braguinha, Custódio Mesquita e outros músicos e artistas da época. Já então se dividia entre o teatro (como ator e autor), o jornalismo e o rádio. Mas não guardou nada do que produziu. "Já deu muito trabalho escrever, não tive tempo de arquivar". E nem teria lugar em casa. "Quem quiser escrever essa história procure que vai achar." Contador de histórias - "Se me pedem para contar como foi a revolução de 30, tenho o maior prazer; aos 89 anos, sou capaz de lembrar fatos antigos e esquecer o que almocei", ressalta. Os 90 anos chegam em 26 de novembro deste ano e Mário avisa que não quer festa. De longe, o filho Carlos Augusto acena afirmativamente enquanto responde um sonoro não sobre a comemoração. Motivos não faltam, até porque Mário Lago está de bem com a vida. "Sou como Edith Piaf, Je ne regrette rien" (não lamento nada). Fiz o que quis e fiz com paixão. Se a paixão estava errada, paciência. Não tenho frustrações, porque vivi como em um espetáculo. Não fiquei vendo a vida passar, sempre acompanhei o desfile."

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