Maratona das cores

Com projetos de telas e esculturas à espera no ateliê, Tomie Ohtake faz périplo expositivo

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Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
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Aos 90 anos, Tomie Ohtake podia ser vista nadando em sua piscina. Hoje, aos 100, a pintora se contenta em andar de bicicleta (ergométrica), ainda que dentro de sua casa, no Campo Belo. Mas, se o físico impõe suas regras, a memória eidética da pintora compensa essas limitações. Tomie é capaz de lembrar como ganhou de presente de Volpi a pequena tela de sua sala de estar, ou o dia em que virou amiga de Yoko Ono, quando a viúva de John Lennon, também artista plástica, montou em São Paulo uma exposição pela paz mundial. Figura presente em todos os eventos artísticos da cidade, ela já não sai tanto de casa, mas acompanha pela televisão tudo o que acontece no mundo. Sua mais recente paixão, revela, é o papa Francisco. Não católica, Tomie ficou surpresa com suas declarações a respeito dos desafortunados.No passado, eram as revistas que traziam as notícias e forneciam material para o trabalho artístico da pintora, como comprova a exposição Influxo das Formas, que será aberta amanhã. Nela estão recortes que serviram de modelo para algumas pinturas de Tomie. Durante anos ela seguiu o mesmo procedimento dos 'gouaches découpés' (collages de papel cortado) de Matisse - o segundo na sua lista de pintores preferidos depois de Rothko, a qual também inclui o norte-americano Robert Motherwell. Tomie recortava grandes blocos de cor e formava com eles figuras ou composições abstratas.Os curadores da mostra do Instituto Tomie Ohtake, Agnaldo Farias e Paulo Miyada, descobriram que, além de centenas de recortes, a artista mantinha o hábito de conservar em cadernos folhas soltas com miniaturas de seus quadros. Tiveram, então, a ideia de montar uma sala com essas pinturas e seus modelos virtuais feitos com canetas esferográficas coloridas. Essas formas, reconheceram os curadores, vão e voltam na obra da pintora num movimento circular, o que explica a retomada de imagens dos anos 1960 nas mais recentes telas. "Nunca planejei de modo racional essas formas", diz. "Elas simplesmente surgiam", simplifica. No entanto, a passagem da figuração para a abstração, nos anos 1960, assegura, foi motivada pela observação dos objetos que decoravam sua casa na Mooca. Entra aí sua afinidade com a arte do contemporâneo americano Robert Motherwell (1915-1991), da New York School (a dos expressionistas abstratos) - à qual pertenceram Rothko, Jackson Pollock e Willem de Kooning. Motherwell, também excelente gravador, como Tomie, tem uma série, a Open (1967), que lida com permutações de planos cromáticos cortados por uma linha fina. Tomie, que sempre respeitou a autonomia da cor, evitando misturar as tintas na tela, buscou um diálogo com as collages do pintor e seus trabalhos com papel japonês - que ele expôs na Bienal de Veneza, a mesma mostra em que a pintora exibiu suas litografias, em 1972, ao lado do pop Rauschenberg.Apesar da maestria na área e de ter produzido gravuras para a transcriação que o poeta concreto Haroldo de Campos (1929-2003) fez de Hagoromo, a mais conhecida peça do teatro nô japonês, Tomie afirma que a literatura nunca inspirou uma série sua, como Motherwell, que pagou tributo aos poetas franceses modernos, especialmente a Baudelaire e Mallarmé. Mesmo a música, que adora, nunca a conduziu à pintura.Ela gosta mesmo é de interagir com a arquitetura, como fez no Auditório Ibirapuera com a obra de Niemeyer. Ou com o espaço urbano, mesmo que hostilizem suas obras, como a estrela que flutuava na lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio, de lá retirada para ser restaurada e finalmente desmontada como sucata pelo estaleiro que a construiu. Ela ri ao lembrar dos comentários bairristas que o desenhista e dramaturgo Millôr Fernandes (1923-2012) fez quando a escultura, de 17 toneladas, foi instalada no Rio, em 1985.Tomie não desistiu do tridimensional. Em sua casa, há uma mesa repleta de maquetes de esculturas realizadas e outras a caminho da rua. É lá que a pintora é lembrada, até por quem não se interessa por arte, como os motoristas que passam pelo Monumento à Imigração Japonesa (1988) na avenida 23 de Maio. Uma obra, aliás, para homenagear as quatro gerações de japoneses que vivem no Brasil.

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