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Mar importado

Criatividade verbal não faltava ao inventor do mar da Pampulha

Por Humberto Werneck
Atualização:

Fui falar na falta de um mar mineiro, e eis que das montanhas veio um vagalhão de manifestações, empapadas, quase todas, do humor característico dos nativos. Como assim?, reagiu o pessoal, tem cabimento sair por aí dizendo que Minas não tem mar?, com tamanha veemência que me sinto compelido a novamente surfar no assunto, empoleirado agora em prancha bem mais firme. 

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No mínimo, passei atestado de desinformado, limitando-me a mencionar a efêmera Praia do Prado, improvisada com baldes de areia e de água, além de guarda-sóis numa esquina deste então (corria o ano de 1977) pacato bairro, num cocuruto de Belo Horizonte, estripulia pela qual se interessaram a reportagem da revista Veja e, previsivelmente, a Polícia. 

Belo-horizontino de no máximo meia-tigela, eu não sabia da existência da Praia da Estação, rebuliço dionisíaco que há 8 anos, com ou sem pretexto, volta e meia crepita na Praça Rui Barbosa, ali no coração, ou, mais exatamente, no antigo baixo-ventre da capital mineira, tão bem descrito em Beira-mar, o quarto volume das memórias de Pedro Nava. Embora morador a centenas de quilômetros dali, eu tinha a obrigação de saber do fenômeno, pois até o grande Anthony Bourdain, falecido há poucos dias, registrou em som e imagens a “Beach Station” de Belo Horizonte, numa reportagem sobre a culinária mineira.

Vale descrever o cenário em que se instalou a novidade. Há muito já não ferve nas imediações o cabaré da legendária Olimpia Vazquez, espanhola de cabelo nas ventas que tinha sempre à mão um longo pé de meia recheado de bolas de bilhar, posto a girar, qual boleadeira, quando fosse necessário restabelecer o bom comportamento de uma clientela cravejada de estudantes, entre eles o citado Nava, mas também figuras gradas da recatada sociedade mineira dos anos 20, que ali abriam seus parênteses de libertinagem.  Foi-se a Olimpia, mas na praça segue ereto, bem em frente ao prédio da Estação, hoje Museu de Artes e Ofício, além de estação do metrô, o Monumento à Civilização Mineira, no topo do qual um mancebo desnudo desfralda uma bandeira. Encomendado em 1930 ao escultor italiano Giulio Starace, o bronze já ia ser fundido em São Paulo quando o emissário do governador Antônio Carlos foi ver se estava nos conformes – e constatou que não, pois o mancebo tinha seus balangandãs ao vento. Veio do palácio a ordem para corrigir a indecência, e o escultor, contrariado, providenciou uma brisa, de modo a que uma esvoaçante ponta da bandeira ocultasse a prenda. 

É à sombra desse brônzeo peladão que a praça volta e meia se transforma em “praia”, desde o dia de 2010 em que o prefeito Márcio Lacerda proibiu manifestações em frente à Estação. Foi o que bastou para que o espaço fosse imediatamente ocupado por biquínis, sungas, esteiras, cerveja e o mais haja em matéria de emolumentos praianos, encarregando-se uma fonte pública de fornecer o elemento líquido sem o qual nenhuma praia é praia, tudo isso embalado pelos avantajados decibéis de equipamentos de som. Não adiantou o prefeito secar a fonte, pois os foliões passaram a recorrer a caminhões-pipa. A farra segue, hoje sem contestações. A Praia da Estação não foi tudo o que me escapou na prosa da semana passada. Faltou mencionar, e neste caso por esquecimento, uma secular batalha de Minas Gerais por um quinhão de litoral, iniciada em 1910, ano em que seu governo comprou dos baianos, por 300 contos de réis, um filete de terra, da divisa entre os dois Estados a Ponta de Areia, distrito de Caravelas: 142 quilômetros por 6, em meio aos quais corria o trecho terminal da Estrada de Ferro Bahia a Minas.

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A transação, se é que chegou a consumar-se, nunca se efetivou nos mapas, e terá perdido sua finalidade – ou pretexto? – quando, em 1966, o ímpeto rodoviário do regime militar desativou a ferrovia. Sete anos mais tarde, a reportagem da revista O Cruzeiro foi a Caravelas e ressuscitou a história, sob o título Olha aí o Mar de Minas. Se não voltou a andar, dela ficou o consolo de ter inspirado uma obra-prima da canção brasileira, pois o repórter era Fernando Brant, parceiro de Milton Nascimento na criação de Ponta de Areia: “Ponta de areia, ponto final / da Bahia a Minas, / estrada natural / que ligava Minas ao porto, ao mar”.

Menos poética, na verdade cômica, para não dizer grotesca, foi outra história que igualmente esqueci de registrar na semana passada como ilustração do que seria a obsessão marítima dos filhos de Minas Gerais: a do falecido Nelson Thibau, folclórico político que, candidato à Prefeitura de Belo Horizonte, tentou seduzir o eleitor montanhês com a promessa de bombear água de Angra dos Reis até a capital mineira, para com ela substituir a da represa da Pampulha, na qual faria singrar um navio de bom porte. Era só “quebrar champanhe” quando o mar chegasse, dizia. 

Criatividade verbal não faltava ao inventor do mar da Pampulha. Amava slogans, jamais vitoriosos, e nas eleições presidenciais de 2014 lapidou mais um, que seu candidato não se animou a usar: “Agora vai dar, uai / O avô não foi, mas o neto vai”. Como também ali entrou areia, dá para dizer que mesmo em Minas pode o mar morrer na praia.

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