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Maiakóvski reeditado na Rússia, por Boris Schnaiderman

Artigo publicado no Suplemento Literário de 1961 demonstra atenção para escritores da antiga União Soviética

Por Boris Schnaiderman
Atualização:

A recente edição das Obras Completas de Maiakóvski, promovida pela Academia de Ciências da U. R. S. S., e da qual nos falta ainda o décimo terceiro e último volume, com a sua correspondência, algumas entrevistas à imprensa e talvez outros materiais, constitui provavelmente o maior trabalho de reconstituição da sua obra realizado até hoje. No entanto, a própria elegância desses volumes forma um contraste gritante com a personalidade de Maiakovski.

 

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Realmente, era preciso um ato de coragem para fazer uma edição tão acadêmica da obra do poeta antiacadêmico por excelência. O revoltado, o desabusado Maiakóvski, que se expressava aos gritos e palavrões, está enquadrado numa edição bonita, arrumada, como qualquer poeta rococó do século XVIII. O polemista que escrevia em 1928, a propósito da intenção da Academia de editar as obras as obras do seu mestre V. Khliénikov, que então sem ele estaria definitivamente sepultado, aparece agora imobilizado por sua vez nessa edição em bonitos tijolinhos. Mas, não obstante tudo isto, que trabalho excelente! A minúcia, o carinho, a pesquisa incansável se uniram para reconstituir o poeta dos punhos cerrados e da gritaria a plena voz, que desafiava os céus, os astros, os deuses e os poderosos da terra, e para cuja poesia não existiam fronteiras nem limitações.

 

Felizmente, a edição não foi precedida de um estudo sobre a sua obra, do ponto de vista do realismo socialista. Um desses balanços de aspectos positivos e negativos, comuns nas edições soviéticas, seria no caso particularmente absurdo e resultaria numa série de restrições antipáticas e completamente inadequadas. Mesmo assim, essas restrições não foram evitadas de todo, aparecendo mais discretamente nas notas que acompanham cada volume. Por exemplo, tendo publicado conscientemente os ataques de Maiakóvski aos pintores realistas da década de 1910 e a sua exaltação de uma arte liberta de qualquer cópia da natureza, os estudiosos da sua obra acrescentam acacianamente que, na verdade, ele não tinha razão, que esta pertencia aos que ele atacava. Tais comentários aparecem nas notas com muita frequência, mas a oposição dos organizadores da edição a certas concepções do poeta não os impediu de publicar a sua argumentação cerrada e sarcástica. É verdade, porém, que em uns poucos casos esta oposição chega a prejudicar a transmissão correta da obra. Em alguns poemas de Maiakóvski há palavrões escabrosos, e a pudicícia dos editores fez com que eles fossem substituídos por reticências. Quase sempre, é fácil adivinhar a palavra eliminada, mas, num caso pelo menos, aparecem linhas inteiras de reticências, tornando o poema de todo incompreensível.

 

No entanto, é preciso repetir, só podemos ficar reconhecidos ao zelo acadêmico dos organizadores da edição, pois finalmente o poeta aparece estudado em minúcia, numa reconstituição admirável. Os versos, as peças de teatro, os cenários de cinema, as legendas para cartazes, as notas de viagem, os seus importantes ensaios de teoria literária, os artigos de imprensa, as discussões públicas de que participou, tudo isto vem registrado e anotado, com as variantes existentes. Mesmo os seus apartes em discussão literárias aparecem estenografados, até com as falhas da estenografa e uma tímida sugestão sobre o que o poeta provavelmente dissera. Neste sentido, nunca é demais frisar a honestidade com que se reproduziram ataques ferozes de Maiakóvski a determinadas tendências ainda dominantes na U. R . S. S. Estão incluídos na edição poemas até há pouco inéditos. Entre estes figura pelo menos um importantíssimo: "Carta a Tatiana Iácovelva". É sem dúvida um dos mais representativos de Maiakóvski, dos seus arroubos e extremos, da violência e brutalidade genial do seu verbo. Dirigindo-se a uma russa em Paris, começa por dizer:Quer no beijo das mãos ou dos lábios, Quer no tremor de corpo dos meus próximos a cor vermelha das minhas repúblicas deve também arder.

 

Depois de afirmar a sua repulsa ao "amor parisiense", às "femeazinhas enfeitadas de seda" e de lembrar que aquele ambiente não era para ela, que andara sobre a neve, em meio ao tifo, convida-a voltar à pátria e expressa o seu ciúme (aliás, o seu "ciúme pela Rússia Soviética", que estava precisando de gente assim, de pernas compridas), e acaba exclamando que um dia haverá de tomá-la, sozinha ou com a cidade de Paris.

 

Temos que nos conformar realmente com este pálido resumo; para traduzir devidamente o poema seria preciso expressar toda a magia verbal de Maiakovski, o seu jogo fabuloso de sonoridades novas, inusitadas, as suas assonâncias e dissonâncias, as suas revoltas e explosões. Pois deve-se frisar sempre a sua realização como artesão extraordinário do verbo, que aproveitou magistralmente os caminhos indicados pelo seu companheiro de lutas Khliébnikov.

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Mais uma vez, ele sublinhou que a sua qualidade de poeta revolucionário não tinha nada de incompatível com a condição de artesão da palavra e que, pelo contrário, a primeira dessas qualidades, para se exercer condignamento, implica a segunda. Se procurou refletir a realidade imediata, foi como artista, com toda a dignidade que o uso da palavra requer. Voltando-se contra o seu emprego banal e estratificado, buscou uma nova forma para as novas realidades. A revolução, segundo ele, só podia ser expressa numa forma revolucionária, nunca segundo as fórmulas cediças ou a "volta aos clássicos", já esboçada em seu tempo e proclamada com tanto empenho após a sua morte. Revolução e arte de vanguarda eram para ele inseparáveis. Por isto, face à maré de academismo e mau gosto, apregoava em 1928: A república das artes está em perigo mortal; perigam a cor, a palavra, o som.

 

Vivendo como artista a realidade histórica, expressando-a sempre, Maiakóvski deu um exemplo admirável de coerência, no decorrer de toda a sua obra. Numa literatura cujos maiores representantes se distinguiram frequentemente pela veemência com que expressaram as suas contradições, ele não procurou outra glória senão a de refletir o seu momento, a sua revolução, a sua realidade. Esta coerência, esta capacidade de refletir a vida do país, aparece desde os seus primeiros versos e permanece uma constante através de toda a obra. Se, deflagrada a guerra, em 1914, exclama: "Ah, fechem, fechem os olhos dos jornais!" e expressa o seu horror à conflagração, pouco depois haverá de cantar os feitos das armas, russas, com patriotas e um tom exaltado de que zombará mais tarde. Mas justamente nessa aparente incoerência está a sua coerência maior, a sua busca de uma arte que expresse não o passado, ou mesmo o eterno, mas que seja o reflexo da humanidade do seu tempo. Tornar-se-à, portanto, o poeta do comunismo de guerra, há de exaltar a revolução implacável, sangrenta, destruidora, desenhará cartazes para os quais escreverá legendas incisivas, procurará nas palavras de rua as novas ressonâncias que o seu verso requer. Mas, expressando esta realidade, nunca se curvará ante certas contingências mesquinhas, nunca se acomodará, será sempre o antiburguês, o antifilisteu, fustigará o espírito pequeno burguês em todas as suas manifestações, numa obsessão e numa luta de todos os instantes. Os seus ataques ferozes à burocracia são também um reflexo dessa luta contra o espírito pequeno burguês, que ele via por toda parte, na tendência para uma arte acadêmica, no gosto à acomodação, nos filmes medíocres, nas peças de teatro frustras, nas modas enfim, nas mais diversas manifestações da vida cotidiana, e que ele fustigou com igual intensidade.

 

Este é o artista que a Academia enfeitou na sua comportada e elegante edição. Mas os seus gritos de punho cerrado, a sua violência e fulgor sobrepassam a moldura dourada, vencem a camada espúria do falso brilho e da falsa imponência, para nos trazer a imagem do poeta, refletida na sua grandeza autêntica pelo trabalho paciente dos pesquisadores.

 

O poeta e o tradutor

Maior nome da poesia e do teatro de vanguarda russos do começo do século passado, Valdimir Maiakóvski (1893-1930) teve sua obra divulgada no Brasil com destaque pelo ucraniano Boris Schnaiderman, que chegou ao País no ano de 1925. Em 1960, Schneiderman deu início ao curso de Língua e Literatura Russa na USP.

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