Mahfuz escreve o romance da literatura árabe moderna

Quem é este homem do Nilo, cuja obra começa, a partir do Nobel, a ser comparada à de Hugo, Zola, Mann, Balzac e, principalmente, Dickens? Por Safa A. Abou Chahla Jubran

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Por Agencia Estado
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Naguib Mahfuz, nasce em 1911 no Gamiliyya, bairro cairota de classe média. Formado em filosofia em 1934, publica seu primeiro livro em 1939. Sua obra soma mais de 30 romances além de mais de dez coletâneas de contos. É o escritor que inaugura o gênero romance no âmbito da literatura árabe moderna. Foi assim que Mahfuz foi apresentado ao Ocidente em 1988, logo após ganhar o Prêmio Nobel de Literatura. Contudo, Naguib Mahfuz já era muito conhecido, lido e prestigiado por milhões nos países árabes. Mas, afinal, quem é este homem do Nilo, cuja obra começa, a partir desse prêmio, a ser comparada à de Hugo, Zola, Mann, Balzac e, principalmente, Dickens? Reconhecidamente rica por abarcar vários gêneros de narrativa, a literatura árabe - da qual Mahfuz é hoje um dos maiores referenciais - não conhecia, contudo, o gênero "romance" da forma que se concebe hoje. As primeiras tentativas sérias neste campo se deram pelas mãos de Muhammad Hussein Haykal, em 1913, e seguido por Taha Hussein, Abbas Al-Aqqád e Tawfíq Al-Hakím, todos também egípcios. Parece, porém, que o gênero romance teve de esperar mais algum tempo para se firmar como tal, e isto de fato ocorre em 1939, quando é publicado o primeiro romance de Mahfuz. Os estudiosos costumam dividir sua obra em três etapas distintas. A primeira cobre sua produção entre 1939 e 1944. Esse período engloba três romances baseados na história do Egito Antigo, os quais, embora ambientados no Egito Faraônico, traçam um paralelo com a invasão e a ocupação da terra dos Faraós por outros povos, além da ocupação inglesa, vivenciada pelo autor. A segunda etapa se inicia em 1945, com a publicação do livro intitulado Al-Qahira Al-Jadidah (O Novo Cairo), e culmina com a famosa trilogia escrita entre 1956 e 1957, publicada quatro anos depois de ser elaborada. É uma narrativa que cobre várias gerações de uma família de comerciantes, descrevendo sua ascensão e declínio, suas aspirações e decepções, seus ideais e frustrações, tendo como pano de fundo as mudanças sócio-econômicas e políticas pelas quais passava o Egito e vivenciadas pelo autor. Com essa trilogia, Mahfuz fez as atenções se voltarem para seus trabalhos anteriores. Alguns estudiosos ainda arriscam que, não fora a trilogia de Mahfuz, uma parte da história social do Egito teria sido irremediavelmente esquecida; nesse sentido, essa obra reúne, ao lado do seu valor artístico e ficcional, um valor histórico e documental. Entretanto, uma interrupção curiosa na sua carreira ocorre entre 1952 e 1959. Alguns críticos justificam esse silêncio ao tremendo esforço desempenhado na aplicação das técnicas realistas na trilogia, o que, segundo eles, teria levado ao esgotamento, pois, nessa obra, o realismo alcançou tal ponto de perfeição que o escritor dificilmente conseguiria se superar em outro trabalho imediato. Outros ainda responsabilizam os acontecimentos políticos posteriores à revolução de 1952. Seja qual for o motivo da interrupção, o silêncio é rompido, em 1959, quando aparece o romance Awlád Háratina (Os Meninos de nosso Bairro), publicado em capítulos no jornal diário Al-Ahrám (As Pirâmides). É uma alegoria da vida humana desde seu início até os dias de hoje. Esse romance lhe causou problemas com os líderes religiosos, que acusaram-no de blasfêmia em virtude das referências a Moisés, Cristo e Maomé. Esse fato provocou a proibição do romance em todos os países árabes, exceto no Líbano. A publicação de Al-Liss wa al-Kiláb (O Ladrão e os Cachorros), em 1962, traz uma mudança radical de estilo, o que irá marcar definitivamente uma terceira fase na produção de Mahfuz. Assim, a ficção até 1952 tratava das condições sociais do Egito até então; nos anos que seguem, temos um olhar crítico em relação a esse período e, após 1967, temos um escritor que se aventura pelo estilo surrealista, escrevendo contos, um tanto ou quanto absurdos, tais como O Quarto Número 12 (cuja tradução ao português foi publicada em 1994 na revista Magma, editada pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP). Assim, o estilo realista/naturalista que caracterizava a ficção de Mahfuz em seus trabalhos anteriores é trocado por um estilo que balança entre o impressionista e surrealista. Entretanto, Mahfuz não sossegava, sempre em busca de um novo estilo, uma outra forma de narrar, e revisitou então o passado, buscando de lá traços e técnicas da genuína arte de narrar da literatura árabe, cujo maior exemplo é As mil e Uma Noites. Visão - Em suma, na obra de Mahfuz encontram-se exemplos de ficção histórica, épica, realista, naturalista, impressionista e surrealista. Seja qual for o estilo, a época descrita, a ambientação escolhida, a abordagem efetuada, Mahfuz sempre quis dar uma visão socio-política da existência humana; mesmo em romances de abordagem fortemente metafísica, como Al-Taríq (O Caminho), a mensagem social está sempre presente. Um escritor socialmente engajado, crítico contundente das injustiças pelas quais passou a passa seu país. Para ele, a ética pessoal não é separada da ética coletiva. Em seus romances, descreveu, estudou e analisou as mais variadas facetas do ser humano, sua atuação como indivíduo e como membro de uma sociedade. Para Mahfuz, a literatura deve ser engajada, recriando a memória coletiva de um povo ou de uma dada sociedade; e deve ser mais revolucionária do que as próprias revoluções. Mesmo assim, os narradores de Mahfuz raramente se colocam como uma voz ativa no texto, mantendo neutralidade em relação às lutas travadas pelos personagens e aos discursos conflitantes dos representantes dos vários grupos. Talvez seja esse sábio distanciamento que lhe tenha conferido o respeito tanto dos modernistas como dos conservadores. Mesmo assim, essa posição não o livrou de passar por uma tentativa de assassinato, felizmente mal sucedida, em 14 de outubro de 1994. Os grupos fundamentalistas foram acusados de tê-lo atacado por suas declarações a favor da paz com Israel, por seu livro Awlád Háratina (Os Meninos do nosso Bairro), considerado blasfemo à religião, e por sua opinião contra a condenação à morte do escritor Salman Rushdie, emitida pelo Aiatolá Khomeini. É preciso ressaltar que a obra de Mahfuz, embora engajada nos problemas de seu povo, não pode ser considerada local ou regional. Os temas por ele abordados são universais, a sociedade injusta descrita é presente em todo o mundo, os becos, cenários de muitos romances de Mahfuz, são cruéis no Cairo como o seriam em qualquer outro ponto do planeta, a cobiça não tem cor, a esperança não fala uma única língua e a pobreza, o amor, a decepção, os ideais e as lutas não têm documento de identidade; enfim, a tragédia humana não tem endereço. Mahfuz, hoje lido em várias línguas e apreciado por milhões no mundo inteiro, é tema de várias teses de mestrado e doutorado nos Estados Unidos e na Europa. Enquanto isso, o Brasil conhece muito pouco da obra de um dos mais destacados romancistas da literatura árabe moderna. Seus livros traduzidos no Brasil não ultrapassam dois ou três, sendo que um único deles, Al-Summán wa al-Kharíf (As Codornas e o Outono), o foi diretamente do árabe. Talvez seja hora de o Brasil conhecer Mahfuz.

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