
06 de novembro de 2010 | 00h00
No livro O Altar & O Trono, Ivan Teixeira se encarrega de continuar um trabalho da crítica mais recente que procura mostrar Machado muito mais mergulhado nas questões de seu tempo do que indicava a imagem do escritor recluso e avesso a polêmica, estabelecida em biografias e estudos mais antigos. E Teixeira o faz sem converter Machado numa espécie de crítico social antiliberal, protomarxista, como ainda é comum encontrar em círculos universitários. O objetivo é entender a novela publicada no periódico A Estação em 1881 e 1882 como "imitação burlesca da história do mundo, particularizada no pastiche do processo de hierarquização de uma cidade".
Desse modo, Teixeira enreda o texto em fatos marcantes do Segundo Reinado (1840-1889), tema central de toda a obra ficcional de Machado. O conflito entre Estado e Igreja, a consolidação da medicina psíquica (Dom Pedro II fundou o primeiro hospício brasileiro) e a ameaça à unidade territorial da monarquia são as questões presentes na trama machadiana. Teixeira recorre a exames de charges da imprensa e estuda o perfil do leitor, ou melhor, da leitora de A Estação, para captar os valores morais do Rio daquele período. Mas o livro também analisa todas as influências sobre o autor, como Os Caracteres, de Teofrastro (autor grego que Machado provavelmente leu na versão francesa de La Bruyère), e os relatos de Swift e Poe.
Fiel a seu tema, Teixeira não faz de Machado nem nacionalista nem internacionalista. Como ele mesmo escreveu num ensaio de 1872, Instinto de Nacionalidade, a maturidade literária não viria da polarização entre adoradores de estereótipos e copiadores de europeus. Teixeira respeita em Machado igualmente o analista dos costumes brasileiros e o pensador da natureza humana. E destaca a agudeza - e faltou dizer a atualidade - de seu humor político, ao "ironizar a facilidade com que as massas apoiam os falsos líderes".
Sendo o livro uma defesa de tese (para livre-docente da Escola de Comunicação e Artes da USP), o argumento central é adiado por uma série de considerações teóricas e explanações históricas, embora com uma escrita sempre clara e fluente. Depois Teixeira alinha Machado na tradição satírica, lembrando que sua ironia podia ironizar até mesmo o recurso da ironia. Mas, já na metade do livro, chega ao ponto: O Alienista pode ser entendido como "caricatura dos desentendimentos do clero com o Estado imperial brasileiro", sobretudo na década de 1870. Afinal, a novela conta a história de Bacamarte, mas quem dá o veredicto sobre ele é o padre Lopes. Trata-se de uma denúncia de Machado contra a Igreja, mais do que contra a ciência. Já passa da hora de reconhecer a antirreligiosidade de Machado, que teve a coragem rara em sua época de negar a extrema-unção.
Não é que a ciência não seja satirizada: ela é, sim, mas por quê? Neste ponto, o terço final do livro, Teixeira não é tão claro. Machado critica a ciência justamente por emular a religião, por se comportar com o mesmo radicalismo moral daqueles que dizia combater. Ou seja, ri do Positivismo por transformar a razão num substituto absoluto da fé. Em outros termos, ele estava longe de ser um inimigo da razão e do método científico. O que o desconsolava profundamente era que a ciência dissesse ter a cura para os "males da alma", à maneira do clero, e achasse possível julgar o interior de um homem por sua aparência física. Por esse critério, o epiléptico e gago Machado de Assis poderia não ser o mais concentrado e articulado escritor desta terra de crédulos. E é.
Encontrou algum erro? Entre em contato
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.