24 de dezembro de 2020 | 03h00
Existem alguns ditados populares que, embora os repitamos à exaustão, não atinamos com seu verdadeiro significado até que nos deparemos com uma situação em que sua essência seja trazida à tona. “Ah, então era isso...”, percebemos finalmente.
Aposto que o leitor é vítima de uma confusão com um dos ditados mais frequentemente citados entre nós. Trata-se de um equívoco mais do que justificado, pois tal ditado geralmente é interpretado como sendo sobre a importância do trabalho coletivo, algo por si só louvável, mas na verdade ele fala sobre associação espúria e variável de confusão – tema inóspito para cair no gosto popular.
Antes de revelar a máxima, retomemos alguns conceitos básicos: associação espúria é quando duas coisas acontecem juntas, mas sem relação de causa e efeito. Existe alguma variável de confusão a uni-las, um terceiro fator que causa ambas, explicando por que elas andam juntas.
As andorinhas, por exemplo, abandonam as regiões frias durante o inverno, mas com a chegada das estações quentes elas retornam para o lugar de origem. Não são a causa da mudança do clima, são consequência dela. Ou seja, uma andorinha não faz verão.
Sim, eu sei. Colocando muita ênfase nesse “uma” do início da frase, levando o ditado para o lado da importância da coletividade. Mas se um bando inteiro de andorinhas resolvesse trabalhar junto, seriam elas capazes de fazer o verão? Não. Se quiséssemos muito manter o espírito anti-individualista do ditado poderíamos entender que apenas quando andorinhas chegam em bando é que o calor vem de fato. Nessa leitura, o “uma” versus “várias” seria relevante, mas para tanto teríamos que reescrever a frase para algo como “Uma andorinha não sinaliza o verão”.
Outro ditado cujo significado mudou para mim nos últimos dias foi o da famosa luz no fim do túnel. Eu sempre entendi como o surgimento de uma esperança em meio a uma situação adversa. Até que recebi a notícia da aprovação das vacinas contra a covid-19 e fui invadido por um alento. De repente minha interpretação mudou.
Afinal de contas, desde o primeiro momento da pandemia eu nunca tive dúvidas de que a biologia do vírus viria a ser desvendada e alternativas encontradas, fosse de tratamento, fosse de prevenção. A vacina para mim era uma certeza. Então por que essa esperança renovada diante das noticias?
Mas não é exatamente isso o que acontece num túnel? Quando nos embrenhamos numa travessia dessas sabemos que entraremos por um lado e sairemos por outro. Por mais longa que seja a caminhada, por mais escuro que seja o ambiente, seguimos adiante justamente porque acreditamos que haverá uma saída. Mas assim como minha crença na vacina, trata-se até então de uma espécie de fé: firme, sem dúvida, mas não baseada em evidencias reais, apenas no que sabemos sobre o mundo e no que podemos esperar mais à frente. Até que vislumbramos a luz. E o que era uma convicção torna-se conhecimento.
Ver a luz no fim do túnel, então, não é tanto sobre deparar-se ao acaso com uma solução. É antes o coroamento dum esforço para encontrar a saída que desde o começo sabíamos que estaria lá. Exatamente como no caso das vacinas.
É PSIQUIATRA DO INSTITUTO DE PSIQUIATRIA DO HOSPITAL DAS CLÍNICAS, AUTOR DE ‘O LADO BOM DO LADO RUIM’
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