Lucio Fontana sob luz brasileira

Mostra A Ótica do Invisível apresenta uma panorâmica abrangente da carreira do pintor ítalo-argentino, um dos mais importantes do século 20, e sua influência nas artes plásticas do Brasil

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Por Agencia Estado
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Depois de passar pelo Rio e por Brasília, finalmente chega neste sábado a São Paulo a exposição Lucio Fontana - A Ótica do Invisível, uma introdução à obra de um dos mais importantes artistas do século 20, vista a partir da ótica brasileira. São cerca de 60 trabalhos do artista ítalo-argentino, entre eles uma impressionante estrutura em néon projetada inicialmente para a Trienal de Milão, que se desenha no ar em interessante oposição à cúpula art nouveau do Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB). Praticamente todas as fases de sua carreira estão representadas, desde as esculturas dos anos 30 e 40, mais clássicas, até os cortes, furos e incisões por meio das quais ele propôs a superação dos cânones tradicionais da arte em prol de uma nova dimensão espacial, em que arte e ciência se aproximam. Além desse panorama de Fontana, a mostra também traz uma pequena seleção de obras nacionais, de artistas como Lygia Pape, Amílcar de Castro, Hélio Oiticica, Nelson Leirner e Nuno Ramos, que estão em evidente diálogo com o pensamento artístico de Fontana. Faltam à seleção algumas obras importantes, que foram mostradas na versão carioca da exposição, como os azulejos cortados de Adriana Varejão, excluídos por causa do espaço exíguo. Essa relação entre o pensamento de Fontana e a arte brasileira constitui o foco central da curadoria de Paulo Herkenhoff (ajudado na seleção das obras do artista pela Fundação Lucio Fontana, de Milão). Atual curador do Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) e idealizador da 24.ª Bienal de São Paulo, realizada em 1998, Herkenhoff deu uma entrevista na qual comenta a importância de Fontana para a arte latino-americana e mundial. Agência Estado - Seu objetivo foi mais o de propor uma revisão da arte brasileira da segunda metade do século 20 sob a ótica de Fontana do que apresentar o artista ítalo-argentino ao público brasileiro? Paulo Herkenhoff - Sinceramente, não fiz "uma revisão da arte brasileira da segunda metade do século 20", até porque na mostra não estão Volpi, Samico, José Resende ou Jac Leirner. O que busquei na sala brasileira foi trazer obras pertinentes, algumas mais diretamente vinculadas a Fontana, como as inteligentes homenagens de Nelson Leirner, e outras mais complexas, mas igualmente interessantes ao diálogo proposto. Com relação a Fontana, não me interessava realizar mais uma mostra com mais um catálogo do acervo da Fundação Fontana. Compreendi que era uma oportunidade de exibir sua obra no Brasil e que seria uma ponta-de-lança para introduzir a arte brasileira ao público e meio artístico italiano. O catálogo da editora Charta traria um novo compasso, ainda que modesto, para vê-lo em outra perspectiva e, em troca, pediria um olhar atento sobre o Brasil. Essa condução tática me interessa muito em minha prática curatorial. Todas as vezes que me derem uma plataforma usarei em favor desse processo de inclusão. Como foi a experiência de ver a produção nacional através das fendas de Fontana? Evitei tratar qualquer corte ou rasgo como uma conversa espacialista. Também busquei trabalhar um leque de questões para além da grande marca do "conceito espacial", como a relação com a metafísica e o simbolismo. Preocupei-me em armar um prisma com uma certa quantidade de lados. O Brasil sempre foi receptivo a Fontana, mesmo se às vezes houvesse alguma crítica. Você considera Fontana um dos grandes paradigmas da arte do século 20? Não tenho dúvidas a respeito. As questões postuladas por Fontana no final da década de 40, que depois se desdobram na primeira metade dos anos 50, lhe garantem um lugar especial na história da arte. Fontana foi grande pelo modo como compreendeu a pintura enquanto objeto e enfrentou os impasses da superfície da tela na nova constituição do espaço. No final da vida viveu uma amargura de não se ver suficientemente reconhecido, odiando Pollock como quem lhe tivesse roubado o lugar. Afinal, ambos enfrentaram a tela a partir de questões que, sendo distintas, também tinham pontos em comum. O fato de ele nunca ter participado do boom norte-americano fez com que seu reconhecimento ficasse aquém do merecido? Fontana é uma das maiores vítimas da política das artes de sua época. Os EUA estavam envolvidos em constituir o triunfo internacional do expressionismo abstrato. Grandes segmentos de seus críticos, artistas e instituições negavam e desprestigiavam, por princípio, tudo que viesse da Europa. Dubuffet era uma exceção que não lhes ameaçava o monopólio. O próprio formalismo italiano e a ausência de políticas agressivas não deram a devida sustentação estratégica que a obra de Fontana necessitava. No entanto, museus norte-americanos menos envolvidos com a diplomacia cultural do país, como o Walker Arts Center de Minneapolis, colecionam melhor a obra de Fontana do que os museus maiores e mais centrais. O Walker é também o museu que alavancou a introdução de Hélio Oiticica nos EUA. O Brasil, com a Bienal de São Paulo, teve o privilégio de ver Fontana em várias oportunidades. Essa mostra pode ser considerada um desdobramento do esforço feito na 24.ª Bienal de São Paulo de propor uma leitura da arte brasileira a partir de uma ótica nossa? Acho que uma das responsabilidades de um curador num país como o Brasil, com uma produção importantíssima e ao mesmo tempo marginal em grande parte, deve ser buscar a integração da arte do país na história da arte em termos internacionais. A 24.ª Bienal foi a plena realização disso. Afinal, a Bienal é a maior plataforma da arte brasileira. Do contrário, ela perde sua especificidade e interesse. Quase cem curadores do mundo inteiro foram postos estudando a antropofagia. A história da arte é uma operação de guerra simbólica que se luta com exposições, textos, catálogos, seminários, conceitos, mas sobretudo com a própria arte. Hoje a antropofagia está razoavelmente integrada no processo internacional, é reconhecida como um ponto de singularidade da cultura moderna no Brasil. Iniciei a coleção neoconcretista no MoMA enquanto tal há alguns anos, quando em plena Documenta de Kassel me sentei com Rob Storr e lhe fiz ver a importância de Oiticica. Eu nem estava ainda no MoMA. Depois que cheguei, já entraram obras extraordinárias como O Livro da Criação, de Lygia Pape, e Nós, de Cildo Meireles, doadas por Patricia Cisneros. Hoje o MoMA já sabe com respeito o que é neoconcretismo. As carreiras singulares creio que logo serão consideradas. Você poderia falar mais do caráter latino-americano de Fontana? Enquanto esteve em Buenos Aires nos anos da guerra, Fontana era um artista conservador: fazia esculturas públicas e arte funerária. Seu ensino na Academia de Altamira em 1947 era escultura modelada em gesso a partir de modelo vivo. O Manifesto Blanco dos alunos da Academia de Altamira não contém a assinatura de Fontana. Não faz mal, era pura discussão teórica sem obras importantes que fizessem, pelo menos, um contraponto. Em 1946 - quem diz é Tomas Maldonado - era um fator de conservadorismo na Argentina, e não saiu nenhum artista apto de seu ensino. Na verdade, o espacialismo foi uma teoria que pouco agregou à pratica dos artistas. Nisso, o espacialismo tinha algo semelhante ao futurismo: teoria sem obras extraordinárias, o que se adapta a qualquer realidade. Houve alguma relação formal, mais explícita, entre neoconcretistas e espacialistas? Os manifestos espacialistas de Fontana na Itália giravam em torno dele mesmo, se repetiam e circunstancialmente agregavam artistas, alguns com obra já definida, outros que nunca se tornariam artistas significativos. Fontana tinha uma necessidade muito marcada do "manifestismo". O que se deu no neoconcretismo foi exatamente o oposto a tudo isso que ocorreu com o espacialismo: uma enorme adesão entre obra e projeto conceitual e político. Mesmo na obra de Hércules Barsotti, que considero com Décio Vieira o mais sutil e delicado dos neoconcretistas, as idéias que animam o debate estão lá. A exposição e o texto realizam essa possibilidade de confrontar o desejo de espaço em Fontana e em alguns neoconcretos. A consciência do plano e do volume como campo de percepção, o método de constituir o espaço (como a linha orgânica de Lygia Clark, o corte na escultura de Amílcar de Castro ou as chapas de metal batido de Franz Weissmann). Seria exagero afirmar que mesmo numa obra tão "científica", da qual foi banida a expressividade e a figura, ainda estão preservados elementos culturais importantes, como a relação entre o corte e o imaginário gaúcho, das lutas à faca que o artista viu na infância A produção de Fontana caiu, de certo modo, num circuito fechado do conceito espacial. Em dado momento, parecia transformar o gesto de descoberta em ação decorativa. No entanto, incessantemente Fontana rompia com suas limitações, como no caso das grandes esculturas, do ambiente de Kassel, da escultura em néon, que estará em São Paulo e das pinturas ovais da série Fine de Dio. Não sei se ele chegou a abandonar totalmente a expressividade como fez com a figuração. Embora dissesse que o gesto de cortar a tela não fosse violento, era um momento mágico e grave. Há duas entradas para percebermos a "argentinidade" da obra de Fontana. A primeira seria baseada na história da arte. Ele próprio reiterou em sua correspondência com Gyula Kosice que a Argentina fazia a arte mais avançada do mundo ainda no início dos anos 50. Fontana já tinha certa idade quando aprendeu com os artistas do grupo Madí e Concreto-Invención a importância do vazio no interior da forma construída. A escultura italiana, salvo Melotti, era extremamente afirmativa do volume. Este lado mediterrâneo também estava na escultura de Fontana ao refugiar-se na Argentina natal no período da guerra. Em Buenos Aires ele viu, anotou, teorizou e, ao retornar a Milão, fez à sua maneira com os talhos e furos do conceito espacial. Fontana teria sido o primeiro artista moderno europeu, se quisermos, a "formar-se" a partir de uma influência da América Latina. A briga de facas de gaúchos, lembrança de infância em sua cidade natal de Rosário, permanece como memória afetiva da forma. Assim, Fontana é um artista mais argentino do que italiano. Você concorda com Luigi Tazzi de que em Fontana "o corte é a marca da paixão que o rigor da razão esfriou, mas não extinguiu"? Um dos melhores textos sobre Fontana que conheço é este de onde sai esta afirmação. Foi escrito por encomenda para o catálogo da 24.ª Bienal de São Paulo. Tazzi é um crítico atualizado e um historiador atento. Sabe que a obra de Fontana foi um dos motores decisivos da arte da Europa do pós-guerra. Sabe que foi um parâmetro estético para alguns membros do grupo Zero e um modelo político para a Arte Povera. Evidentemente, o que interessa não é a descoberta de Fontana pelo mercado. O que se terá cada vez mais é a inclusão de Fontana na discussão da arte da última metade do seculo 20 e a reavaliação de seu peso devido na história da arte. Serviço - Lucio Fontana - A Ótica do Invisível. De terça a domingo, das 12 às 18h30. Centro Cultural Banco do Brasil. Rua Álvares Penteado, 112, São Paulo, tel. 3113-3651. Até 16/6. Abre sábado, às 10 horas para convidados e às 11 horas para o público.

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