Lucas e Tom, o encontro

Conversa promovida pelo Estado não foi só de 'rasga-seda': havia certa divergência a se resolver

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Por Lauro Lisboa Garcia
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A música de Lucas Santtana, um dos músicos mais inteligentes e inventivos de sua geração, está conectada à de Tom Zé da mesma maneira como se emaranham os laços familiares. Ambos nascidos na Bahia, Tom migrou para São Paulo nos anos 1960 e Lucas, para o Rio três décadas depois. Eles são primos, mas pouco se veem. "Fui padrinho de casamento dos pais de Lucas", lembra Tom. Na tarde de terça-feira, a convite do Estado, os dois se encontraram no escritório dele, no bairro de Perdizes, para falar das conexões entre seus trabalhos. "Mas essa conversa não vai ser só de rasga-seda", disse Tom, minutos antes da chegada de Lucas.Havia uma mal esclarecida divergência entre eles, agora retomada, sobre "o método de se aproximar de pessoas". Tom Zé havia dito que só fazia música pensando em determinado público, ao que Lucas retrucou que nunca faria nada que envergonhasse o filho, Josué, de 9 anos, que, aliás, adora o CD Danç-Êh-Sá, que Tom lançou em 2006. "Eu nunca realmente pensei em fazer música para um público determinado. Sou egoísta mesmo nesse aspecto. Penso no que acho que aquilo é sincero para mim e rezo para que aquilo chegue às pessoas e que elas gostem. Mas não penso: agora vou fazer um disco mais de pop-rock porque eu quero chegar à garotada."No tempo em que as emissoras de rádio eram mais democráticas e criteriosas, Tom Zé teve vários sucessos executados: Jeitinho Dela, Augusta, Angélica e Consolação, Se o Caso É Chorar. Não significa, porém, que seu cancioneiro tenha se pautado pelo aspecto comercial. "Eu me expliquei mal, então. Observo o que está fazendo as pessoas pensarem e qual problema está presente. Então, trago esse problema e trabalho sobre isso, mas nem sei se as pessoas vão se interessar."Ritmo e textura. Começando a sessão rasga-seda, Tom Zé lembra que escreveu o texto da contracapa do primeiro disco de Lucas. "Notei uma coisa que é natural. Todos nós, velhos, ficamos com medo. Você vê uma coisa nova e só se apaixona se tiver desprezo pela vida, senão fica com ódio", ri Tom. "Ele tinha no início uma preocupação com onde ocupar cada semicolcheia com instrumentos de percussão. Sempre foi minha mania procurar soluções rítmicas. Na época de Perez Prado, ele preenchia muito pouco o espaço do tempo, tinha muitos vazios e aquilo era um gosto rítmico sensacional.""Meus discos têm essa questão rítmica, mas também muita preocupação com a textura", rebate Lucas. "No primeiro, havia obsessão pela percussão e pelos andamentos rápidos, essas coisas só possíveis na juventude. Com o tempo, perde-se umas coisas e ganham-se outras." A partir do segundo, ele se concentrou mais nos timbres. "A música de Tom Zé sempre teve isso. Em Jogos de Armar ele usa sons de liquidificador, de enceradeira. Aquilo é uma maneira de trazer para a música popular outros tipos de timbres, não só o do violão, o da guitarra, do baixo, esses timbres tradicionais."Curiosamente, os dois tocam cavaquinho. "Comecei a tocar no show Parada de Lucas, em 2003, para poder fazer uns sambas. O Jiló, que toca bateria comigo, me falou uma vez, antes de Zeca Pagodinho estourar, que as bandas da nossa geração não tocavam samba. E era verdade. Aí a gente resolveu fazer do nosso jeito." As duas músicas escolhidas para servirem de "laboratório" dessa maneira de tocar samba foram Pode Me Chamar, da banda Eddie, e Ogodô 2000, de Tom Zé.Lucas foi muito influenciado por Estudando o Samba (leia abaixo), o disco que também mexeu com a cabeça de David Byrne e cuja descoberta deu a maior reviravolta na carreira de Tom Zé, que havia caído no ostracismo, nos anos 1980. "Uma das coisas com que me identifico com Tom Zé é o experimentalismo", diz Lucas. Seu quarto álbum, Sem Nostalgia, um dos mais significativos de 2009, "reconstrói o violão". "Isto é Estudando o Samba. Ele pegou o samba ali e fez a mesma coisa, então é muito próximo."No texto escrito para o encarte do primeiro CD de Lucas, Tom Zé dizia que sabia-se se o cantor era bom pela mixagem. Aí é que as diferenças entre Tom e Lucas começam. "Eu gravo ainda com o tipo de voz com que Roberto Santana mixava Elis Regina. Embora não tenha voz, boto a minha na altura que ficava a dela", diz Tom. Já Lucas vem de uma geração muito influenciada pela música jamaicana, em que o grave do baixo é predominante. "Como a nossa geração do pós-tropicalismo e pós-Beatles vinha com um volume de som mais alto, por conta de tocar em estádios, isso virou uma cultura. Então, o grave produz uma sensação de útero materno."

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